::::c::::a::::o::::s::::m::::o::::s:::: Caô Press |
2.5.03
A respeito da imortalidade (Elias Canetti)
É bom partir de um homem como Stendhal quando se fala de imortalidade privada ou literária. Seria difícil encontrar uma pessoa com maior aversão às representações correntes de fé. Stendhal foi um homem inteiramente livre das promessas e dos laços de qualquer religião. Seus pensamentos e seus sentimentos voltavam-se exclusivamente para esta vida. Ele a sentiu e desfrutou da maneira mais precisa e profunda. Ele se abriu para tudo o que podia lhe dar prazer, e isso não fez com que se tornasse insípido, porque respeitou o que havia de individual em si mesmo. Não reduziu nada a uma unidade duvidosa. Desconfiou de tudo que não era capaz de sentir. Pensou muito, mas nele não existe pensamento frio. Tudo o que registrou, tudo o que criou conserva o calor de sua origem. Ele amou muitas coisas e acreditou em algumas, mas tudo era sempre milagrosamente concreto. Tudo podia ser facilmente encontrado dentro dele, sem que tivesse a necessidade de lançar mão de algum truque. Esse homem que nada pressupunha, que sempre quis encontrar tudo através de si mesmo, que era a própria vida como sentimento e espírito, que se encontrava no centro de todo acontecimento, e que por isso também era capaz de contemplar o que acontecia de fora para dentro, no qual a palavra e o conteúdo coincidem da maneira mais natural possível, como se ele se tivesse proposto a depurar a linguagem por conta própria, esse homem excepcional e realmente livre tinha, apesar de tudo, uma fé , da qual fala de maneira tão natural e tão leve como se fosse uma amante. Ele se contentou, sem revolta, em escrever para poucos, com a certeza de que 100 anos mais tarde muitos o leriam. Nos tempos modernos não é possível conceber uma fé na imortalidade literária que seja mais clara, mais isolada e mais modesta. Que significa essa fé? Qual é o seu conteúdo? Significa que a pessoa continuará existindo quando todos os seus contemporâneos tenham deixado de existir. Não que ela esteja indisposta em relação aos vivos como tais. Eles não são eliminados, nada se faz contra eles, eles nem sequer são combatidos de alguma forma. Desprezam-se os que alcançaram uma glória falsa, mas sempre sente-se também desprezo diante da alternativa de combatê-los com os seus próprios meios. Nem sequer se sente rancor em relação a eles, uma vez que se sabe até que ponto eles estão equivocados. Opta-se pela companhia daqueles aos quais se irá pertencer algum dia; a companhia de todos os que são autores de obras lidas ainda hoje; daqueles que falam conosco, dos quais nos nutrimos. A gratidão que se sente em relação a eles é uma gratidão pela própria vida. Matar para sobreviver nada pode significar para esse estado de ânimo, porque não se trata de sobreviver agora, mas, sim, de entrar na liça apenas dentro de cem anos, quando já não se estará mais vivo pessoalmente e por conseguinte não se poderá matar. Serão as obras que se confrontarão, e será demasiado tarde para acrescentar qualquer coisa. A rivalidade propriamente dita, a que realmente importa, começa quando os rivais já não estão presentes. O combate que será travado por suas obras nem sequer poderá ser presenciado por eles. Mas essa obra precisa existir, e para que exista deve conter a maior e mais pura medida de vida. Não apenas se desdenhou a possibilidade de matar; fez-se com que entrassem para a imortalidade todos os circunstantes. Para aquela imortalidade em que tudo se torna efetivo, tanto o menor como o maior. Trata-se do oposto daqueles donos do poder que arrastam consigo para a morte tudo o que os cerca para que, numa existência futura, reencontrem tudo aquilo a que estavam acostumados. Nada caracterizava de maneira mais espantosa sua impotência íntima. Eles matam em vida, matam na morte, um séquito de mortos os acompanham para o além. Quem, porém, abrir um volume de Stendhal torna a encontrá-lo juntamente com tudo o que o rodeava, e o encontra aqui nessa vida. Assim, os mortos se oferecem aos vivos aos vivos como o mais nobre de todos os alimentos. Sua imortalidade acaba sendo proveitosa para os vivos; nessa reversão da oferenda aos mortos, todos acabam sendo beneficiados. A sobrevivência perdeu seus aspectos negativos e o reino da inimizade chega ao fim. Elias Canetti: Massa e Poder, tradução de Rodolfo Krestan, São Paulo, Ed.UB/Melhoramentos, 1983, pp. 308/309. |