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::::c::::a::::o::::s::::m::::o::::s:::: Caô Press

20.6.03

Literatura infantil - continuação

O post anterior trouxe-me boas recordações do tal armário onde minha mãe achava que escondia seus livrinhos licenciosos.

Na verdade, não passava de um caixote de pinho com duas prateleiras e uma portinhola frestada, cuja fechadura consistia num bem atado fio de arame. Como não era preso à parede, ficava num canto da área de serviço do nosso antigo apartamento no centro de Angra e servia de suporte para uma pilha de jornais amarelados, usados na limpeza das janelas e espelhos.

Sempre tive um interesse peculiar pelo que conseguia ver através das brechas desse armário: duas fileiras de livros dispostos de forma a não dar pistas dos títulos, totalmente diferente do que acontecia com os volumes da pequena biblioteca da casa, à qual eu tinha livre acesso.

Insisti várias vezes numa autorização para lê-los e recebia um indefectível não-porque-não como resposta. Até que finalmente decidi aproveitar o fato de que a mãe trabalhava o dia todo fora de casa e pus-me a desfazer com cuidado a amarração do arame, atividade que exigia paciência e nenhuma aporrinhação. Dei azar nesse segundo item e acabei sendo pega em flagrante pela empregada em sua pose de chaleira: uma das mãos em forma de alça segurando a cintura e a outra no ar, alertando-me quanto ao castigo que teria se ficassem sabendo daquilo.

Chantageei a moça na cara dura, ameaçando abrir o bico sobre as visitas vespertinas que ela recebia do namorado enquanto eu e minha irmã, inocentes, assistíamos Tom & Jerry na sala. Tamanha doçura dissipou o ar de bedel da doméstica e, comovida, ela ajudou-me a terminar de desembaraçar o fio.

Sozinha, sentei-me no chão e aleatoriamente puxei um dos volumes. Era O túmulo que chora, da Adelaide Carraro. Se o título era esdrúxulo e o enredo dispensa comentários, o livro ainda possuía uma edição horrorosa até para os padrões de uma menina de dez anos: o desenho tosco de um túmulo "chorando" na capa e, na contracapa, uma foto da escritora em pé, abraçando um menino e segurando uma rosa. Embaixo da foto, a legenda "Adelaide Carraro, a escritora que amou as criancinhas". Anos mais tarde, descobri que além da petizada, ela também amou o Adhemar de Barros, ex-governador de São Paulo.

Sob os auspícios da empregada, passei aquela tarde e muitas outras me divertindo com as peripécias das mocinhas que caíam na vida, seduziam padres ou que gostavam muito de brincar com as primas, narradas pela Adelaide, e também com as mulheres da Cassandra, sofisticadas, insaciáveis e com questões existenciais muito próximas às levantadas nos filmes do W.H. Khouri, outro tio clássico da minha infância.

Não posso terminar sem antes dizer que, no meio do mafuá das obras das duas senhoras, havia o livro de um tal DH Lawrence que eu li, reli, treli.

Quanto à minha amada mãe, ela segue sem saber da violação de seu acervo de historinhas picantes.




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