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::::c::::a::::o::::s::::m::::o::::s:::: Caô Press

29.11.03

Apenas um artigo entre tantos outros

Em meados de 1997 escrevi uma pequena monografia para obter nota numa disciplina ministrada pelo Roberto Machado na UFRJ. Para obter nota? Enfim. Essa monografia acabou virando um artigo que foi publicado numa revista em maio de 1999 e logo depois publicado em caosmos.

Nesse artigo eu procuro mostrar que, se aceitamos a interpretação de Deleuze em Nietzsche e a Filosofia, a doutrina ética do eterno retorno implica a noção de risco.

Muito bem. Mas que diabos é o risco? Acabei "descobrindo" que essa noção está entre aquelas que todo mundo utiliza sem refletir muito sobre seu sentido. O que é o risco? O risco... é o risco, oras. "Todos sabem" o que é o risco, não é mesmo?

Assim, esse artigo acabou mudando o próprio tema da minha tese, que a princípio seria sobre Bergson. É por isso que, a despeito de algumas reservas, tenho até hoje grande carinho por ele. Na época, foi para mim uma surpresa descobrir que ele havia sido incluído nos links do site argentino Nietzscheana; e hoje tive uma nova (e grata) surpresa quando, ao fazer uma pesquisa sobre Nietzsche, descobri por acaso que ele também está listado no site espanhol Filosofia.net.

E daí? E daí nada. É apenas mais um artigo entre tantos outros. Mas se o leitor me permitir um breve desabafo, quero dizer ainda duas palavrinhas. Eu jamais estive contente consigo mesmo. Aliás, durante (pelo menos) dez anos de minha vida, eu pratiquei o rigoroso método (inventado por mim mesmo) de nadificação: eu não sou nada, eu não sou ninguém. Antídoto poderoso contra a pretensão que acomete noventa e nove em cada cem intelectuais, que se julgam melhores do que (todos) os demais somente porque aprenderam duas ou três (ou cem) coisinhas, e que sob inúmeros aspectos são, na realidade, bem piores. Conheci isso bem de perto, muito de perto. Fora e dentro de mim.

Mas hoje, aos quarenta e dois anos, estou bem mais contente com aquilo que estou me tornando, e por uma excelente razão. Aprendi, finalmente, e aprendi na carne, que é possível amar a si mesmo e acreditar na própria potência sem por isso menosprezar os demais. Aprendi que as palavras quase enigmáticas de Deleuze em Différence et Répétition ("afirmar mesmo o mais baixo") fazem todo o sentido do mundo, e que se uma consciência é mais intensa, então tudo o que lhe resta a fazer é intensificar as demais consciências, sem juízos de valor, ou, melhor ainda, sem juízo algum. Aprendi que, já que a vida não tem nenhum sentido, então o único "sentido da vida" aceitável é intensificar a própria vida. Aprendi que amor e generosidade podem ser muito mais do que simples "valores" na boca de hipócritas: aprendi que eles podem ser práticas concretas, experiências vivas.



28.11.03

O ovo da serpente

Helen chamou-me a atenção para um texto chamado "Quem Não Lê Não é Humano", escrito por Alexandre Soares Silva.

Meus comentários serão tão concisos quanto possível, já que estou escrevendo minha tese e não tenho tempo a perder. Para o leitor que porventura esteja na mesma situação, eis aqui um breve resumo dos argumentos de A.S.S.:

(1) Há uma razão diretamente proporcional entre a consciência de um homem e suas leituras. Quanto mais leituras, mais consciência.
(2) Um homem que não lê só possui (como o animal) a consciência imediata do aqui e agora, e portanto não deve sequer ser considerado um homem.
(3) Todas as possíveis conseqüências totalitárias dessa divisão radical da humanidade em "humanos" e "não-humanos" podem ser facilmente evitadas pela aplicação de um "princípio universal" segundo o qual os mais fortes não devem foder os mais fracos, porém cuidar deles.

Minhas respostas a esses argumentos são as seguintes:

(1) A consciência de um homem está em razão direta de sua capacidade de criar, e a relação entre leitura e criação está longe de ser diretamente proporcional. Ler não significa necessariamente compreender, compreender não significa necessariamente pensar, pensar não significa necessariamente levar o pensamento às últimas conseqüências, e levar o pensamento às últimas conseqüências não significa necessariamente criar (ou significa?).

Inversamente, é lícito supor que um mínimo de leitura (excelente) pode alimentar (com sobras) toda a cadeia descrita acima. Para ficar apenas num exemplo, do que seria capaz um homem que compreendeu à perfeição o Zaratustra de Nietzsche?

O que importa aqui é abandonar o modelo da aquisição (quem lê "mais" adquire "mais" consciência) e mergulhar na prática da criação. Será que Mozart, Hendrix e Van Gogh foram grandes leitores?

(2) Já que é absurdo "medir" a intensidade e a qualidade da consciência de um homem meramente por suas leituras, é uma insanidade excluir da condição humana aqueles que "não lêem". Por sinal, se a humanidade fosse esperar a leitura (tal como nós a conhecemos) para emergir, ainda estaríamos pulando de galho em galho. A humanidade não se "fez" pela leitura, mas pela escrita na carne (rituais de iniciação) e pela oralidade. E a Ilíada certamente não era menos intensa antes de ser fixada por Homero.

(3) Pensar é uma experiência intensa precisamente quando se leva o pensamento às últimas conseqüências. Ora, a que conseqüências o pensamento de A.S.S. pode conduzir? No limite, aos campos de concentração: nesse sentido, é bastante significativo que o autor tenha comparado os "iletrados" a moscas e cupins. E o que o autor nos apresenta como antídoto contra essas más interpretações de seu pensamento? Nada menos (e nada mais) do que um "princípio" pretensamente "universal" segundo o qual "nós" (os intelectuais, os sabidos) devemos ser complacentes com os animais de duas pernas cuja única curiosidade é saber o que trazemos em nossas sacolas e que - ora vejam - nos encaram ao invés de baixar a cabeça reconhecendo nossa natural superioridade.

Pois eu não gosto de pensamentos que eu não posso levar às últimas conseqüências. Se eu compartilhasse das visões de A.S.S. e tivesse empregados "iletrados", é bastante provável que eu os pagasse muito mal (para que um animal há de querer mais dinheiro?) e ainda deflorasse suas filhas em festas obscuras. Afinal, é tudo boi, é tudo pé de milho: algo de que eu posso dispor. Ops! Não é bem assim, adverte A.S.S.; segundo a regrinha moral preconizada por ele, eu não posso dispor dos menos afortunados! Quer dizer, poder eu posso, mas... não devo. Ora... mas... é claro que não! E quem disse que eu estou dispondo deles? Eu mesmo? Pura força de expressão! Afinal, estou dando emprego para os peões, não estou? E suas filhas, puxa... eu posso jurar que elas adoraram!

Chega a ser cômico: depois de estabelecer as bases de um pensamento totalitário, invoca-se o fio tênue da moral (sob o pomposo nome de "princípio universal") e espera-se que ele seja capaz de "segurar" as funestas conseqüências desse pensamento. Só mesmo um intelectual poderia ser ingênuo a ponto de acreditar que suas abstrações têm todo esse poder.

Não. Não dá para compartilhar uma visão como essa, ou melhor, não dá para acatar esse (falso) problema tal como ele foi proposto. Não é que eu valorize os "iletrados" mais do que valorizo os letrados; é que a diferença entre "letrados" e "iletrados" é somente de grau, e não de natureza. Péssimo critério, péssima divisão do misto.

"Ler as atas" não é o bastante para tornar a vida do "clube" melhor e mais intensa. "Letrar" todos os "iletrados" não resolveria os nossos problemas. Mas seria bem mais fácil do que ensinar os "letrados" a pensar.


SUGESTÕES DE LEITURA

Sobre a impotência dos "intelectuais":

Artaud: O teatro da crueldade (prefácio)
Lawrence: Apocalipse

Sobre o movimento da cultura:

Nietzsche: A genealogia da moral
Clastres: Da tortura nas sociedades primitivas (artigo)



20.11.03

Simple Man (Gary Rossington - Ronnie VanZant)
Lynyrd Skynyrd (pronounced leh-nerd skin-nerd)


Nunca fui apaixonado pela banda americana Lynyrd Skynyrd (formada em 1964), mas gosto muito da música Simple Man.

Os descolados da hora talvez achem piegas versos que dizem "Siga o seu coração / e nada mais" ou "Tudo que você precisa / está na sua alma"; e talvez até fosse possível achar que essa música não passa de um amontoado de clichês a respeito do "homem simples" se não fosse por estes versos do refrão: "Seja um homem simples / ou seja algo que você ame e compreenda".

Esse simples "ou", a meu ver, coloca essa música léguas acima do lugar-comum.

Existem versões diferentes dessa letra na Internet, mas eu prefiro esta, que tirei da versão gravada em estúdio:

Mamma told me
when I was young
Sit beside me
my only son
And listen closely
to what I say
And if you do this
little help you
some sunny day
Ah, yeah

Oh, take your time
don't live too fast
Troubles will come
and they will pass
Oh, find a woman
and you'll find love
and don't forgive, son
There is someone
on the board

REFRÃO:
. And be a simple
. kind of man
. or be something
. you love and understand
.
. Baby be a simple
. kind of man
. Oh, won't you do this (oh my son)
. if you can

Quit your lust
from the rich man's door
All that you need
is in your soul

You can do this
if you try
All that I want for you my son
is to be satisfy

(REFRÃO)

Oh, don't you worry
you'll find yourself
follow your heart
and nothing else

And you can do this, oh babe,
if you try
All that I want for you my son
is to be satisfy

(REFRÃO)



17.11.03

O risco e o risco supremo (ou: a revolução não será televisionada)

Os crimes bárbaros e covardes que levaram os jovens Felipe e Liana à morte em Embu-Guaçu (SP) realimentaram a polêmica sobre a redução da maioridade para dezesseis anos. Paralelamente, eles geraram uma discussão sobre o problema do risco na adolescência que me interessa diretamente, já que estou escrevendo uma tese sobre risco que implica numa redefinição desse conceito. Tenho apenas duas considerações a fazer.

Em primeiro lugar, parece-me incorreto dizer que Felipe e Liana se arriscaram. Só existe risco quando existe consciência do perigo. Se um garoto solta sua pipa (papagaio, pandorga, cafifa) junto à rede elétrica mas não tem uma idéia adequada do que é um fio de alta tensão, ele não está (de acordo com a redefinição de risco que estou propondo) correndo um risco, mas expondo-se a um perigo. Ora, tudo leva a crer que o rapaz jamais levaria sua namorada àquele local se tivesse consciência do perigo que os aguardava; do mesmo modo, tudo leva a crer que a moça não teria aceito o convite. Na tragédia de Embu-Guaçu não houve risco, mas exposição ao perigo, algo que é muito comum entre jovens e sobretudo entre jovens de boa índole: por mais advertidos e bem informados que sejam, eles simplesmente não são capazes de imaginar o tamanho da estupidez humana. Esses desconhecimentos (do mundo e da condição humana) respondem, a meu ver, por boa parte do que se convencionou chamar de risco na adolescência.

Em segundo lugar, é evidente que a adolescência implica uma certa paixão pelo risco (propriamente dito). Aqui, os jovens têm consciência (mais ou menos confusa conforme o caso) do perigo que estão desafiando, e ainda assim - ou por isso mesmo - preferem arriscar-se. Mas por que os jovens se arriscam?

Esta é a resposta do especialista da TV: "Os jovens se arriscam pela falta de imposição de limites por parte dos pais". Já estou cansado de ouvir falar da "falência da função paterna", que para alguns explica todas as mazelas da modernidade. Não estou dizendo que não exista algo como a falência da função paterna; estou dizendo que ela não é uma panacéia teórica que tudo explica. Eu tive uma educação extremamente rígida e no entanto pegava (desde os doze anos) carona de bonde em Santa Teresa, muitas das vezes com um amigo de escola que tinha uma educação não menos rígida. Para quem não sabe, pongar num bonde em velocidade máxima implica em riscos de queda, atropelamento, amputação de membros e morte. Eu e meu amigo não ignorávamos nada disso, até porque ouvíamos falar desses casos a todo momento. E no entanto, lá estávamos nós pongando no oitão. Hoje em dia a maioria dos bondes de Santa Teresa têm seu lado esquerdo (o lado "bom" para a carona, que dá para o meio da rua) totalmente fechado, justamente para reprimir os caroneiros.

Numa palavra, e digo isso baseado tanto na minha vida quanto no trabalho que estou desenvolvendo, a resposta do especialista nada explica. Ele teria demonstrado maior honestidade intelectual se respondesse simplesmente: "Olha, eu não sei porque eles se arriscam; tudo o que sei é que os pais precisam impor mais limites."

É claro que eu fico a imaginar que, em certos casos, pode ser preferível impor menos (e não mais) limites. Se um casal é capaz de se expor a tantos perigos somente para namorar, talvez seja preferível que seus pais paguem uma estadia numa pousada ou os deixem namorar em casa. Mas essa é uma outra discussão. Afinal: por que os jovens se arriscam?

A resposta é muito simples. Os jovens, por definição, não conhecem (bem) nem o mundo nem a si mesmos. Eles estão ávidos para explorar o mundo e para testar os limites de sua potência. Por isso, num mesmo movimento, eles se expõe a perigos e correm riscos. O nome desse processo, como o leitor já deve estar advinhando, é aprendizado.

Se esse aprendizado fosse solitário, talvez as coisas fossem mais fáceis. Mas não. Os jovens se reúnem em turmas e se lançam em desafios coletivos. Fugir ao desafio implica em ridicularização por parte dos demais membros do grupo. Muitos acabam extrapolando seus limites e se dando mal.

Mas nas escolas os jovens não são reunidos em... turmas? E se nós ensinássemos aos jovens que o risco supremo é pensar, já que pensar implica em eliminar de uma vez por todas a moral? E se nós pintássemos o caos diante deles, fazendo-os compreender (em definitivo) a necessidade de construir uma ética poderosa que substitua a moral defunta? Será que eles não passariam a achar a escola o mais excitante dos lugares que há para se estar?

Enquanto isso, nas escolas, tudo o que queremos de nossos jovens (por mais que se diga o contrário) é que eles cheguem a dar respostas iguaizinhas às que estão escritas no caderno dos professores. Realmente excitante.



13.11.03

Momento nossa (maltratada) língua portuguesa

Tenho visto em todos os meios de comunicação o uso sistemático de uma concordância totalmente equivocada, prova de que cada vez menos se pensa naquilo que se diz.

Quando a frase exprime uma porcentagem - por exemplo, "quarenta por cento dos homens adoeceram" - o verbo vai para o plural porque concorda com "quarenta" ou porque concorda com "homens"?

Ora, não foi o "quarenta" que adoeceu. Quem adoeceu foram os homens, na razão de quarenta em cada cem. O verbo vai para o plural porque "homens" está no plural. Levar o verbo para o plural por causa do "quarenta" (ou qualquer outro número expresso na porcentagem) só pode conduzir a aberrações, aliás cada vez mais freqüentes:

"Quarenta por cento da humanidade adoeceram".
"Quarenta por cento da geleira derreteram".
"Quarenta por cento da manada fugiram".
"Quarenta por cento do corpo estavam queimados".
"Quarenta por cento do cardume nadaram para a costa".

Porém digamos que o leitor não aceite o meu argumento. Digamos que o verbo tivesse que concordar mesmo é com o número expresso na porcentagem. Muito bem. Mesmo assim, todos os exemplos acima ainda estariam errados, e por uma boa razão.

Existem dois tipos de multiplicidade: multiplicidades contínuas e multiplicidades discretas. Quando falamos em quarenta por cento de "homens", "gansos", "bolas de gude", "peixes" ou "pedras de gelo", estamos falando em multiplicidades discretas. Nesse caso, temos uma coleção de indivíduos, e portanto um plural autêntico. Quando falamos, porém, em quarenta por cento da geleira (ou do corpo), estamos falando de uma multiplicidade contínua. Não cabe aí o plural.

O mesmo se apliqua a "humanidade", "manada" ou "cardume". Argumentar que a humanidade é composta por homens (ou o cardume por peixes) é inútil, pois quando nós usamos o coletivo nós estamos (justamente) considerando essas multiplicidades como contínuas: um monte de peixes à venda no mercado não é um cardume. Em resumo, ao usar um coletivo, nós pensamos uma multiplicidade (discreta) como se contínua fosse - como se fosse um autêntico indivíduo - e nesse caso só cabe o uso do verbo no singular:

"Quarenta por cento da humanidade adoeceu".
"Quarenta por cento da geleira derreteu".
"Quarenta por cento da manada fugiu".
"Quarenta por cento do corpo estava queimado".
"Quarenta por cento do cardume nadou para a costa".

Inversamente, o correto será dizer:

"Um por cento dos peixes morreram".
"Um por cento dos homens adoeceram".

Pois nesse caso estamos falando de multiplicidades discretas (peixes, homens) e o número "um" exprime uma porção (plural) dessa multiplicidade.

Mas é claro que, em todos os casos, é muito mais simples fazer as perguntinhas mágicas (Quem adoece? Quem morre?), descobrir o sujeito e concordar com ele o verbo.




12.11.03

No tengo muchas verdades,
prefiero no dar consejos,
cada cual por su camino,
igual va a aprender de viejo.
Que el mundo está como está
por causa de las certezas,
la guerra y la vanidad
comen en la misma mesa.


Jorge Drexler



7.11.03

Quem ama exerce Deus — a mãe disse. Uma açucena me ama. Uma açucena exerce Deus?

Manoel de Barros



4.11.03

As musas de caô press

Novembro: Nastassja Kinski



Though they say love is blind,
In dreams I have pictured the one girl.
Deep in my heart enshrined,
She's been the one kind
I have wanted to find.

(George and Ira Gershwin)




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