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13.11.03

Momento nossa (maltratada) língua portuguesa

Tenho visto em todos os meios de comunicação o uso sistemático de uma concordância totalmente equivocada, prova de que cada vez menos se pensa naquilo que se diz.

Quando a frase exprime uma porcentagem - por exemplo, "quarenta por cento dos homens adoeceram" - o verbo vai para o plural porque concorda com "quarenta" ou porque concorda com "homens"?

Ora, não foi o "quarenta" que adoeceu. Quem adoeceu foram os homens, na razão de quarenta em cada cem. O verbo vai para o plural porque "homens" está no plural. Levar o verbo para o plural por causa do "quarenta" (ou qualquer outro número expresso na porcentagem) só pode conduzir a aberrações, aliás cada vez mais freqüentes:

"Quarenta por cento da humanidade adoeceram".
"Quarenta por cento da geleira derreteram".
"Quarenta por cento da manada fugiram".
"Quarenta por cento do corpo estavam queimados".
"Quarenta por cento do cardume nadaram para a costa".

Porém digamos que o leitor não aceite o meu argumento. Digamos que o verbo tivesse que concordar mesmo é com o número expresso na porcentagem. Muito bem. Mesmo assim, todos os exemplos acima ainda estariam errados, e por uma boa razão.

Existem dois tipos de multiplicidade: multiplicidades contínuas e multiplicidades discretas. Quando falamos em quarenta por cento de "homens", "gansos", "bolas de gude", "peixes" ou "pedras de gelo", estamos falando em multiplicidades discretas. Nesse caso, temos uma coleção de indivíduos, e portanto um plural autêntico. Quando falamos, porém, em quarenta por cento da geleira (ou do corpo), estamos falando de uma multiplicidade contínua. Não cabe aí o plural.

O mesmo se apliqua a "humanidade", "manada" ou "cardume". Argumentar que a humanidade é composta por homens (ou o cardume por peixes) é inútil, pois quando nós usamos o coletivo nós estamos (justamente) considerando essas multiplicidades como contínuas: um monte de peixes à venda no mercado não é um cardume. Em resumo, ao usar um coletivo, nós pensamos uma multiplicidade (discreta) como se contínua fosse - como se fosse um autêntico indivíduo - e nesse caso só cabe o uso do verbo no singular:

"Quarenta por cento da humanidade adoeceu".
"Quarenta por cento da geleira derreteu".
"Quarenta por cento da manada fugiu".
"Quarenta por cento do corpo estava queimado".
"Quarenta por cento do cardume nadou para a costa".

Inversamente, o correto será dizer:

"Um por cento dos peixes morreram".
"Um por cento dos homens adoeceram".

Pois nesse caso estamos falando de multiplicidades discretas (peixes, homens) e o número "um" exprime uma porção (plural) dessa multiplicidade.

Mas é claro que, em todos os casos, é muito mais simples fazer as perguntinhas mágicas (Quem adoece? Quem morre?), descobrir o sujeito e concordar com ele o verbo.




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