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28.11.03

O ovo da serpente

Helen chamou-me a atenção para um texto chamado "Quem Não Lê Não é Humano", escrito por Alexandre Soares Silva.

Meus comentários serão tão concisos quanto possível, já que estou escrevendo minha tese e não tenho tempo a perder. Para o leitor que porventura esteja na mesma situação, eis aqui um breve resumo dos argumentos de A.S.S.:

(1) Há uma razão diretamente proporcional entre a consciência de um homem e suas leituras. Quanto mais leituras, mais consciência.
(2) Um homem que não lê só possui (como o animal) a consciência imediata do aqui e agora, e portanto não deve sequer ser considerado um homem.
(3) Todas as possíveis conseqüências totalitárias dessa divisão radical da humanidade em "humanos" e "não-humanos" podem ser facilmente evitadas pela aplicação de um "princípio universal" segundo o qual os mais fortes não devem foder os mais fracos, porém cuidar deles.

Minhas respostas a esses argumentos são as seguintes:

(1) A consciência de um homem está em razão direta de sua capacidade de criar, e a relação entre leitura e criação está longe de ser diretamente proporcional. Ler não significa necessariamente compreender, compreender não significa necessariamente pensar, pensar não significa necessariamente levar o pensamento às últimas conseqüências, e levar o pensamento às últimas conseqüências não significa necessariamente criar (ou significa?).

Inversamente, é lícito supor que um mínimo de leitura (excelente) pode alimentar (com sobras) toda a cadeia descrita acima. Para ficar apenas num exemplo, do que seria capaz um homem que compreendeu à perfeição o Zaratustra de Nietzsche?

O que importa aqui é abandonar o modelo da aquisição (quem lê "mais" adquire "mais" consciência) e mergulhar na prática da criação. Será que Mozart, Hendrix e Van Gogh foram grandes leitores?

(2) Já que é absurdo "medir" a intensidade e a qualidade da consciência de um homem meramente por suas leituras, é uma insanidade excluir da condição humana aqueles que "não lêem". Por sinal, se a humanidade fosse esperar a leitura (tal como nós a conhecemos) para emergir, ainda estaríamos pulando de galho em galho. A humanidade não se "fez" pela leitura, mas pela escrita na carne (rituais de iniciação) e pela oralidade. E a Ilíada certamente não era menos intensa antes de ser fixada por Homero.

(3) Pensar é uma experiência intensa precisamente quando se leva o pensamento às últimas conseqüências. Ora, a que conseqüências o pensamento de A.S.S. pode conduzir? No limite, aos campos de concentração: nesse sentido, é bastante significativo que o autor tenha comparado os "iletrados" a moscas e cupins. E o que o autor nos apresenta como antídoto contra essas más interpretações de seu pensamento? Nada menos (e nada mais) do que um "princípio" pretensamente "universal" segundo o qual "nós" (os intelectuais, os sabidos) devemos ser complacentes com os animais de duas pernas cuja única curiosidade é saber o que trazemos em nossas sacolas e que - ora vejam - nos encaram ao invés de baixar a cabeça reconhecendo nossa natural superioridade.

Pois eu não gosto de pensamentos que eu não posso levar às últimas conseqüências. Se eu compartilhasse das visões de A.S.S. e tivesse empregados "iletrados", é bastante provável que eu os pagasse muito mal (para que um animal há de querer mais dinheiro?) e ainda deflorasse suas filhas em festas obscuras. Afinal, é tudo boi, é tudo pé de milho: algo de que eu posso dispor. Ops! Não é bem assim, adverte A.S.S.; segundo a regrinha moral preconizada por ele, eu não posso dispor dos menos afortunados! Quer dizer, poder eu posso, mas... não devo. Ora... mas... é claro que não! E quem disse que eu estou dispondo deles? Eu mesmo? Pura força de expressão! Afinal, estou dando emprego para os peões, não estou? E suas filhas, puxa... eu posso jurar que elas adoraram!

Chega a ser cômico: depois de estabelecer as bases de um pensamento totalitário, invoca-se o fio tênue da moral (sob o pomposo nome de "princípio universal") e espera-se que ele seja capaz de "segurar" as funestas conseqüências desse pensamento. Só mesmo um intelectual poderia ser ingênuo a ponto de acreditar que suas abstrações têm todo esse poder.

Não. Não dá para compartilhar uma visão como essa, ou melhor, não dá para acatar esse (falso) problema tal como ele foi proposto. Não é que eu valorize os "iletrados" mais do que valorizo os letrados; é que a diferença entre "letrados" e "iletrados" é somente de grau, e não de natureza. Péssimo critério, péssima divisão do misto.

"Ler as atas" não é o bastante para tornar a vida do "clube" melhor e mais intensa. "Letrar" todos os "iletrados" não resolveria os nossos problemas. Mas seria bem mais fácil do que ensinar os "letrados" a pensar.


SUGESTÕES DE LEITURA

Sobre a impotência dos "intelectuais":

Artaud: O teatro da crueldade (prefácio)
Lawrence: Apocalipse

Sobre o movimento da cultura:

Nietzsche: A genealogia da moral
Clastres: Da tortura nas sociedades primitivas (artigo)



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