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::::c::::a::::o::::s::::m::::o::::s:::: Caô Press

8.12.03

Tramas e traços

Marianna Kutassy acaba de enviar-me (para publicação neste espaço) um breve relato sobre a vida compartilhada por seu avô João Augusto Gerlinger (Nuremberg, 1902 - São Paulo, 1957) e sua avó Marie Sophie. Esse relato comovente fala por si, e carece de maiores introduções. Em breve o leitor desta página terá a oportunidade de conhecer dois magníficos retratos realizados por Gerlinger; e tão logo eu termine o trabalho que estou escrevendo, esses textos e imagens serão reunidos e publicados numa página em caosmos especialmente dedicada a esse grande artista.



Ouço ainda as palavras proferidas, em meio tom, pelo crítico perspicaz enquanto manuseava pausadamente algumas poucas obras de Gerlinger, meses atrás: "O papel é de ótima qualidade! E creio que ele o sabia. Apesar dos anos, o papel está em bom estado de conservação".

* * *

As semanas e os anos estendiam-se entre promessas de dias e esperas de longas noites em Santa Teresa, Rio de Janeiro. Ainda lá está erguida a casa que o imigrante alemão João Augusto Gerlinger, sua mulher e filha dividiam com outras pessoas ou famílias. Cômodos de paredes que nem bem alcançavam o teto. Conversas à meia-luz. Confidências engasgadas, contidas, vazantes; palavras que atravessaram paredes. Tempos de guerra na Europa. Era Vargas no Brasil.

Gerlinger sentia-se impelido a se embrenhar nas matas nos dias em que pudesse fugir da rotina. Precisava respirar horizontes infinitamente mais abertos e amplos. Um pouco de ar... Levava a tiracolo seus papéis, alguns pincéis, crayon, canetas, aquarela, carvão... e naquelas horas, longe das responsabilidades e afazeres rotineiros, o seu sensível olhar buscava se mesclar apaixonadamente aos relevos sinuosos e matizes verdejantes que o espetáculo da natureza desta terra tropical propiciava e se lhe oferecia.

Marie Sophie, a mulher, o acompanhava - a mulher que ousara casar-se com um homem mais jovem! Pagaram, ambos, um preço! Altiva. Guerreira. Conhecera os horrores, o sofrimento do corpo e a dor de muito perto. Fora enfermeira da Cruz Vermelha nos idos da 1ª Guerra Mundial. E também ela transportava a sua pequena bagagem quando juntos saíam nos finais de semana. Pequenos tecidos de cortes de vestidos infantis, meadas de linhas em cores desfiadas, algumas agulhas espetadas em papel dobrado. E lá se iam os dois... lado a lado. Itatiaia. Ou Petrópolis. Ou Teresópolis. E novamente, Itatiaia.

Ela sentava-se em silêncio, abrigada à sombra, ao lado de João Augusto. Ele, diante do papel branco, esboçava e pintava as paisagens que seus olhos de artista apreendiam, embevecidos, quando não atraído, e não raras vezes, por minúsculos e pequeninos detalhes que aos nossos olhos não observadores facilmente escapariam: uma pequena folha... um retorcido e velho galho, ou justo, dentre tantas, elegia deter-se minuciosamente naquela árvore. Capturava a atmosfera do dia e em traços firmes delineava cores em linhas, e a plasmava, de pouco a pouco. Datava, apenas.

Diante das tramas de brancos tecidos, bordava ela. Eram momentos em que se amenizavam os infernos. E certamente os havia. Ponto a ponto iam surgindo através das suas hábeis mãos as pequenas "casinhas de abelha" no peitoril de vestidos infantis que depois armava e cosia, pois eram de boa aceitação entre as senhoras da fina sociedade de então. Eram tempos difíceis. Tempos de compartilhar o pão e as poucas batatas. As minguadas e as escassas entradas. Mas também era tempo de cumplicidade, de fiel e dedicado companheirismo - tempo de d(o)ar suporte. O papel e o crayon para João Augusto? Marie Sophie o intuía em seu coração - precisava ser o melhor, e o melhor era o importado. Custasse o que custasse. Para isso é que bordava e cosia. Ambíguo e duplo suporte. Doce e generoso aporte.

Talvez se debruçassem sobre a vida junto à beira das planícies de infinitos verdes que se estendiam qual um tapete a seus pés, enquanto ele pintava e ela bordava. Não o sei. Quiçá tecessem sonhos, amalgamando seus destinos comuns com as mãos em movimentos contínuos, urdindo com papel e tecido, entre agulhas e crayons, as tramas e traços de duas vidas, em meio a um silencioso amor.



Marianna Kutassy





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