::::c::::a::::o::::s::::m::::o::::s:::: Caô Press |
29.3.04
SONG OF A MAN WHO IS NOT LOVED
The space of the world is immense, before me and around me; If I turn quickly, I am terrified, feeling space surround me; Like a man in a boat on very clear, deep water, space frightens and confounds me. I see myself isolated in the universe, and wonder What effect I can have. My hands wave under The heavens like specks of dust that are floating asunder. I hold myself up, and feel a big wind blowing Me like a gadfly into the dusk, without my knowing Whither or why or even how I am going. So much there is outside me, so infinitely Small am I, what matter if minutely I beat my way, to be lost immediately? How small I flatter myself that I can do Anything in such immensity? I am too Little to count in the wind that drifts me through. SONG OF A MAN WHO IS LOVED Between her breasts is my home, between her breasts. Three sides set on me space and fear, but the fourth side rests Sure and a tower of strength, 'twixt the walls of her breasts. Having known the world so long, I have never confessed How it impresses me, how hard and compressed Rocks seem, and earth, and air uneasy, and waters still ebbing west. All things on the move, going their own little ways, and all Jostling, people touching and talking and making small Contacts and bouncing off again, bounce! bounce like a ball! My flesh is weary with bounce and gone again! - My eyes are weary with words that bounce on them, and then Bounce off again, meaning nothing. Assertions! Assertions! stones, women and men! Between her breasts is my home, between her breasts. Three sides set on me chaos and bounce, but the fourth side rests Sure on a haven of peace, between the mounds of her breasts. I am that I am, and no more than that: but so much I am, nor will I be bounced out of it. So at last I touch All that I am-not in softness, sweet softness, for she is such. And the chaos that bounces and rattles like shrapnel, at least Has for me a door into peace, warm dawn in the east Where her bosom softens towards me, and the turmoil has ceased. So I hope I shall spend eternity With my face down buried between her breasts; And my still heart full of security, And my still hands full of her breasts. (D. H. Lawrence) 23.3.04
A ferida propriamente filosófica
O esquecimento não é algo de passivo como a maioria das pessoas pensa. Ele é uma força ativa que "apaga" a memória dos traços e cala o ressentimento. Se não fosse pelo esquecimento, um homem permaneceria investindo a memória de suas experiências ao invés de investir um presente continuamente renovado. O esquecimento é condição de possibilidade para a energia nobre - e a nobreza da energia, como sabem os físicos, é sua potência de metamorfose, sua capacidade de mudar, de transformar-se. É claro que é difícil esquecer feridas recentes. Toda convalescência toma tempo. Mas pior do que ficarmos temporariamente ressentidos por alguma razão é não admitirmos, ao menos para nós mesmos, nossa doença. Reconhecê-la é o primeiro passo para a cura. Até aí, nada de mais. O que acaba de ser dito (no segundo parágrafo, não no primeiro) poderia ter sido dito por qualquer guru de almanaque. Mas a partir de agora o ar se tornará cada vez mais rarefeito. Os de constituição mais delicada poderão precisar de máscaras de oxigênio. A maioria dos homens só conhece feridas pessoais. Muitos passam a vida acusando os demais (ou a si mesmos) pelo seu sofrimento, e de acusação em acusação, de tanto futucarem a ferida, aumentam esse sofrimento e propagam sua doença: "É tua culpa", "É minha culpa", todo o drama (e também a comédia) do ressentimento e da má consciência. Mas alguns, sem dúvida, conseguem ou bem a proeza de curar suas feridas, ou bem conviver com elas causando o mínimo de dano possível a si mesmos e aos demais. Seja como for, não saímos aqui da esfera das feridas pessoais, das mágoas pessoais, da dor pessoal, da vida pequena e pessoal. Mas há um homem cuja ferida é muito mais difícil de curar. Ele está menos doente de si mesmo do que doente do próprio Homem, que, como sabemos, é a doença de pele da Terra. Sua ferida não é pessoal, ela é, por assim dizer, uma ferida cósmica - na medida em que o Homem, essa espécie repugnante que pulula num grão de poeira, é o universo em que vivem os homens. A ferida desse homem é o próprio Homem. Ora, esse homem, ferido de morte não por uma ofensa ou uma mágoa pessoal, mas pelo próprio Homem, só pode curar-se curando o próprio Homem; mas nenhum homem tem poder suficiente para curar o Homem, para de um golpe mudar a condição humana. Tudo o que ele pode é esforçar-se para fazer esse movimento, e nisso dar o melhor de si, mas ele sabe (ou deveria saber) quão limitadas são as suas forças. Curar a si mesmo, curar-se de suas pequenas feridas pessoais, isso é apenas o primeiro passo. O passo seguinte é criar alguma coisa tão cheia de virtude (no sentido renascentista) e tão luminosa em entendimento que seja capaz de participar desse movimento de cura do Homem. Tarefa absurda, quimérica, monstruosa. Esse homem é o filósofo, e essa é a tarefa da Filosofia tal como eu a entendo. O filósofo, é claro, também tem suas feridas pessoais. E é claro que ele está melhor equipado do que ninguém para curar as suas feridas pessoais. Mas o problema é que cada ferida pessoal, num filósofo, entra em ressonância com sua Ferida, que só faz crescer. Cada pequena mágoa de um filósofo desperta um pequeno demônio que não faz outra coisa senão sussurrar-lhe no ouvido: "É inútil tua luta, eu to disse e continuo dizendo, é completamente inútil; o Homem é uma doença incurável, e tu deves o quanto antes morrer de tua Ferida se não quiseres sofrer ainda mais." O filósofo sabe que suas pequenas feridas pessoais pertencem à sua pequena e limitada vida pessoal. Ele está habituado a cicatrizá-las no devido tempo. Só que isso não torna as coisas mais fáceis para ele, pois cada mágoa escarifica ainda um pouco mais sua Ferida, e redobra os ardores de seu pequeno demônio. Para prosseguir em sua tarefa insana o filósofo precisa ser capaz de amar aquilo que despreza, pois o cinismo e a derrisão seriam sua morte em vida, e portanto uma vitória de seu pequeno demônio. O filósofo precisa ser capaz de amar sua própria Ferida. 21.3.04
How Beastly the Bourgeois Is
How beastly the bourgeois is especially the male of the species - Presentable, eminently presentable - shall I make you a present of him? Isn't he handsome? Isn't he healthy? Isn't he a fine specimen? Doesn't he look the fresh clean Englishman, outside? Isn't it God's own image? tramping his thirty miles a day after partridges, or a little rubber ball? wouldn't you like to be like that, well off, and quite the thing Oh, but wait! Let him meet a new emotion, let him be faced with another man's need, let him come home to a bit of moral difficulty, let life face him with a new demand on his understanding and then watch him go soggy, like a wet meringue. Watch him turn into a mess, either a fool or a bully. Just watch the display of him, confronted with a new demand on his intelligence, a new life-demand. How beastly the bourgeois is especially the male of the species - Nicely groomed, like a mushroom standing there so sleek and erect and eyeable - and like a fungus, living on the remains of a bygone life sucking his life out of the dead leaves of greater life than his own. And even so, he's stale, he's been there too long. Touch him, and you'll find he's all gone inside just like an old mushroom, all wormy inside, and hollow under a smooth skin and an upright appearance. Full of seething, wormy, hollow feelings rather nasty - How beastly the bourgeois is! Standing in their thousands, these appearances, in damp England what a pity they can't all be kicked over like sickening toadstools, and left to melt back, swiftly into the soil of England. (D. H. Lawrence) 20.3.04
Última nota
Helen saiu deste blogue, mas não da minha vida; pode-se dizer o mesmo do Mário, companheiro inseparável, ainda que distante, cuja última nota muito me fez refletir (sim, Mário, você tem razão.) E eu mesmo, de certo modo, também estou saindo dele. Deve-se concluir a partir daí que caô press é história? Podem apostar que não. Mas como pode ser isso? Três menos três não é igual a zero? Aparentemente, não faz sentido. Mas faz, sim. Esta é a última nota porque decidi, em primeiro lugar, não mais fazer matérias, digamos, de cunho jornalístico. Nada de comentar notícias. Vocês estão lendo as mesmas notícias que eu e são capazes de chegar às mesmas conclusões. Redundante. E se o Dr. Dráuzio Varella voltar ao "Fantástico" para ensinar que a ciência "descobriu" aquilo que a filosofia já sabe há mais de cem anos (o papel da memória na percepção), farei um esforço para abster-me de comentar. Em segundo lugar, nada de falar da minha própria vida, o que só chegou a acontecer (ainda que raramente) porque este era um blogue amorosamente compartilhado. Em terceiro lugar, vou dedicar mais tempo aos meus projetos (minhas pequenas máquinas revolucionárias, como diz o Mário) do que a este blogue, e portanto as notas serão mais espaçadas entre si. É nesse sentido que esta é minha última nota. A partir de agora, este blogue servirá estritamente para publicar textos de (ou sobre) filosofia, para comentar as novidades em caosmos e, eventualmente, para transcrever um ou outro poema ou letra de música. Assim, bem-vindos à terceira versão de caô press. Ela, de certo modo, retomará a vocação da (curtíssima) primeira versão, que a rigor foi um dos primeiros blogues de toda a Internet (ainda que isso não faça a menor diferença, como já me dei ao trabalho de explicar em outra ocasião.) A próxima nota será a transcrição de um grande poema que me acompanha há mais ou menos vinte anos. Como ele é extremamente forte, é bom esclarecer desde já que ele não será "dedicado" a nenhuma pessoa que eu conheça ou desconheça: que isso fique bem claro. Sua presença aqui deve-se estritamente ao "efeito Dogville", e a nada mais. É um poema para todos e para ninguém. É um desabafo do poeta, um desabafo certeiro, uma autêntica declaração de guerra, mas... um filósofo não se contenta e nem pode se contentar com desabafos. Ainda não é o bastante para ele, que é muito mais ambicioso (no bom sentido). O filósofo não se contenta em simplesmente denunciar a tolice e a baixeza do mundo: ele quer fabricar enzimas efetivamente capazes de dissolver a tolice e a baixeza. A máquina de guerra do filósofo é uma máquina abstrata, mas sua guerra é uma guerra química. No bom sentido, é claro. AVISO: Ao checar os atalhos desta nota, descobri que em 13 de janeiro deste ano o antigo sítio de caosmos foi sumariamente apagado pelo provedor, que agora cobra pelos serviços de hospedagem. Assim, este é o novo link para a primeira versão de caô press. NOTA (21/03 - 8:45): Quando eu digo que a filosofia esclareceu o papel da memória na percepção há mais de cem anos, refiro-me a Matéria e Memória (1895), para muitos o maior livro de Henri Bergson (que retornou a esse tema em vários textos posteriores). Leia-se, portanto, "esclareceu o problema do papel da memória na percepção sem recorrer ao mito ou a uma transcendência qualquer". É claro que podemos, se quisermos, fazer esse problema remontar a Platão e sua teoria das Idéias; mas a meu ver foi Bergson quem o resolveu da maneira mais rigorosa. Nada mais natural, portanto, que as ciências estejam confirmando, à sua maneira, o que Bergson já afirmava no fim do século XIX. 13.3.04
When the music's over
Yeah, c'mon When the music's over When the music's over, yeah When the music's over Turn out the lights Turn out the lights Turn out the lights, yeah When the music's over When the music's over When the music's over Turn out the lights Turn out the lights Turn out the lights For the music is your special friend Dance on fire as it intends Music is your only friend Until the end Until the end Until the end Cancel my subscription to the Resurrection Send my credentials to the House of Detention I got some friends inside The face in the mirror won't stop The girl in the window won't drop A feast of friends "Alive!" she cried Waitin' for me Outside! Before I sink Into the big sleep I want to hear I want to hear The scream of the butterfly Back into my arm We're gettin' tired of hangin' around Waitin' around with our heads to the ground I hear a very gentle sound Very near yet very far Very soft yet very clear Come today, come today What have they done to the earth? What have they done to our fair sister? Ravaged and plundered and ripped her and bit her Stuck her with knives in the side of the dawn And tied her with fences and dragged her down I hear a very gentle sound With your ear down to the ground We want the world and we want it... We want the world and we want it... Now Now? Now! Persian night, babe See the light, babe Save us! Jesus! Save us! So when the music's over When the music's over, yeah When the music's over Turn out the lights Turn out the lights Turn out the lights Well the music is your special friend Dance on fire as it intends Music is your only friend Until the end Until the end Until the end! The Doors (Strange Days - 1967) 12.3.04
![]() Esta é minha última nota em caô press. Mas é também um convite à dança. Portanto, tire os sapatos, ligue aquele aparelho de som em petição de miséria (but still running) e relaxe. Somos só eu, você e Satchmo. You go to my head (Haven Gillespie/ J. Fred Coots) You go to my head and you linger like a haunting refrain And I find you spinning 'round in my brain Like the bubbles in a glass of champagne You go to my head like a sip of sparkling Burgundy brew And I find the very mention of you Like the kicker in a julep or two The thrill of the thought that you might give a thought to my plea Cast a spell over me Still I say to myself get a hold of yourself Can't you see that it never can be You go to my head with a smile that makes my temperature rise Like a summer with a thousand Julies You intoxicate my soul with your eyes Though I'm certain that this heart of mine Hasn't a ghost of a chance in this crazy romance You go to my head
Penúltima nota
Você já leu esta matéria publicada na revista Carta Capital? Então leia, ora. E se você se vira bem na língua inglesa, isto é, no bom sentido, leia também esta outra, publicada no Sierra Times. Eu sei, eu sei, eu sou um chato. Na verdade eu sempre soube. Ainda adolescente, quando (segundo testemunhas) parecia um deus grego, eu me preocupava com os destinos do mundo ao invés de (perdão) pegar a mulherada e preocupar-me com o meu próprio destino. Agora pareço-me muito mais com um sapo barbudo do que com um deus, e nem mudei os destinos do mundo nem corrigi minhas idiossincrasias. Disse-me Guilherme que nós não fazemos a menor diferença na ordem cósmica. Quanto a mim, jamais fui megalômano a ponto de querer interferir na ordem cósmica, porém (sendo eu mesmo um homem) sempre acreditei ser capaz de interferir, de algum modo, na ordem humana. Assim passei da psicanálise ao existencialismo e do marxismo ao zen-budismo, até (finalmente) encontrar Cláudio Ulpiano e descobrir que havia buracos muitíssimo mais embaixo (no bom sentido, façam-me o favor.) Tinha então 22 anos. Hoje tenho vinte anos a mais e sei duas ou três coisas a mais do que sabia então, porém ao contrário da esmagadora maioria dos "pensadores", não me sinto nos píncaros do Himalaia por causa disso. Devo tal feito a um longo e doloroso trabalho sobre mim mesmo - cuja narrativa ficará para outra ocasião, já que sou chato mas não inconveniente. Hoje nem acredito nem desacredito na possibilidade de "interferir na ordem humana": desconheço a esperança e o desespero. Hoje acredito é na teoria do caos, e portanto creio que ninguém pode afirmar de antemão se será ou não a borboleta da vez. Tudo o que se pode fazer é bater as asas, afirmar o acaso e lançar os dados. Apenas o pensamento pode vencer as bombas do Império e as do Terror. Que cada qual cozinhe bem os seus afetos e lance os seus dados, pois é chegado o momento da mais sublime e crucial das guerras. 11.3.04
Como fazer uma b.o.m.b.a__c.a.s.e.i.r.a
Muitas pessoas chegam a este blogue por meio de uma pesquisa, e por vezes os termos pesquisados são dos mais curiosos. Apenas alguns exemplos: "fotos de adolescentes índias nuas", "mosca de asas diáfanas", "cursos gratuitos de camareira", e por aí vai. Houve mesmo alguém do Espírito Santo, usuário do Internet Explorer e do Windows 98, que pesquisou pelo Yahoo (a cada dois dias), durante meses a fio, o meu próprio nome! Estranho, não? Muito estranho. Por via das dúvidas, está tudo devidamente registrado. Mas nada foi tão estranho quanto encontrar a seguinte pesquisa: "b.o.m.b.a__c.a.s.e.i.r.a como fazer". É óbvio que não pretendo chamar a polícia, mas sinto-me na obrigação de fazer alguma coisa; algo que possa realmente ajudar essa pessoa e outras que tenham interesse pelo tema. O que se segue poderá parecer engraçado, mas eu nunca falei tão sério na minha vida. Pois bem, aqui está a receita para fazer uma b.o.m.b.a__c.a.s.e.i.r.a. Pegue as obras dos estóicos e as de Gilles Deleuze, Spinoza (ou Espinosa), Lucrécio, Max Stirner, Henri Bergson, Michel Foucault e Friedrich Nietzsche. Misture tudo muito bem, mas sem fazer confusão; peça ajuda se necessário, mas não se esqueça de que nenhum "mestre", por melhor que seja, poderá substituir o seu próprio esforço. Encontrar o "ponto" certo da massa poderá demorar vários anos, mas ao final você mesmo se terá transformado numa b.o.m.b.a__c.a.s.e.i.r.a muito mais poderosa do que as de qualquer império presente, passado ou futuro, e com a vantagem de poder passar despercebido em todos os lugares, mesmo os de mais alta segurança, como aeroportos e afins. Outra vantagem dessa b.o.m.b.a sobre todas as demais é que ela não esgota seus poderes ao ser usada: ao contrário, quanto mais usada ela for, mais poderosa se tornará. Outra vantagem ainda é que ela é capaz de atingir com extrema precisão o seu alvo sem fazer alarde e sem derramar uma única gota de sangue - e portanto não dará às forças de repressão o ensejo que elas precisam para justificarem a si mesmas. Só mais uma coisa. Houve também uma pesquisa recente com os termos "dictum ac factum em português", provavelmente de algum espectador atento de Dogville. Pois bem; "dictum" quer dizer "palavra"; "factum" quer dizer "fato", "ação", "obra"; e "ac" (ou "atque") é uma conjunção copulativa que pode ter vários sentidos, mas geralmente quer dizer "e além disso", "e também". Portanto, "dictum ac factum" quer dizer algo como "palavra e também ação", "dizer e além disso agir". A propósito: não sou nenhum latinista e não estou aqui exibindo meus "conhecimentos"; simplesmente fiz uma pesquisa num bom dicionário. Tudo o que eu quero é deixar claro algo que as pessoas geralmente não compreendem muito bem: que pensar é também agir. Apenas o pensamento poderá transformar este autêntico hospício num lugar melhor para se viver, mas para começar a pensar as pessoas têm que se deixar afetar pelo pensamento (e não pelo dinheiro, pela fama, pelo poder, pelo conforto e por suas próprias vaidades tolas). Por isso, meu desconhecido amigo desejoso de fazer b.o.m.b.a.s__c.a.s.e.i.r.a.s, é que eu lhe digo que (infelizmente) não existem soluções fáceis. E eu tenho uma notícia ainda pior para lhe dar: nem mesmo o conhecimento assegura a conquista do pensamento. Não espere demasiado do "mundo da cultura", pois a imensa maioria dos que nele vivem permanecem incapazes de modificarem a si mesmos. É preciso dar um passo a mais, é preciso esse grão de loucura que você certamente tem, mas que precisa saber orientar para algo que realmente valha a pena. Ou então você estará sendo tão ou mais idiota do que aqueles que deseja explodir. P.S. (20:45) - Apenas depois de escrever esta nota fiquei sabendo dos atentados na Espanha. Para além do horror que eles inspiram, estou simplesmente enojado com a pressa e a determinação do governo espanhol em atribuí-los ao E.T.A., apesar de todas as evidências em contrário. Por sorte, a verdade está aparecendo rapidamente, e só resta torcer para que os espanhóis (e os norte-americanos) dêem, nas urnas, a resposta que seus governos merecem. P.S. II (17/03 - 23:00) - Depois de escrever esta nota, já recebi pelo menos dez visitas de gente pesquisando vocês sabem muito bem o quê. Confesso que eu não imaginava que tanta gente pesquisasse esse tema. Pensei bem e cheguei à conclusão que é inócuo dizer a essas pessoas que o pensamento é a única violência que vale a pena. Não muda nada. Não adianta nada. Eu não tenho esse poder. Daí a decisão de mascarar a expressão que dá título a esta nota. E por falar em máscaras, os visitantes desta página podem ficar tranqüilos. Eu apenas me defendo, eu não ataco ninguém - e portanto vocês não precisam se dar ao trabalho de esconder-se atrás de proxies ou mudar de IP. Muito barulho por nada. 10.3.04
Advogado pede proibição de "A Paixão de Cristo" no Brasil
Ainda hoje eu não consegui assistir (decentemente) a Je vous salue Marie, de Jean-Luc Godard, e essa lamentável lacuna na minha formação se deve à ação da censura orquestrada pelas piores forças reacionárias daquela época (década de oitenta). Pois bem. Um advogado paulista (cujo nome não merece ser citado aqui) entrou ontem com um requerimento no Ministério da Justiça pedindo a proibição (ou a exibição apenas para maiores de 18 anos) do mais recente filme do tolo e pretensioso Mel Gibson. Segundo a matéria publicada por Thiago Ney na Folha Online, o advogado em questão (que assistiu ao filme numa cópia pirata em DVD, comprada, segundo ele, na rua Augusta) afirma que o filme "é uma apologia (sic) e uma distorção histórica capaz de conduzir à discriminação anti-semita". Eu não pretendo assistir a esse filme; Mel Gibson é muito medíocre para o meu gosto (pudera, com um pai daqueles), e além do mais a vida de Spinoza me interessa bem mais do que a de Cristo. Prefiro, ao invés disso, assistir (pela terceira vez) ao fabuloso Dogville, ou a outro filme qualquer. E é claro que, a princípio, concordo com a exibição de "A Paixão de Cristo" apenas para maiores de 18 anos, já que (pelo que dizem) o tal filme, além de equivocado, é de uma violência extrema. Mas me dá graça pensar que um doutorzinho se arrogue o direito, não apenas de ditar por conta própria decisões que cabem aos órgãos competentes (classificação por faixa etária), mas ainda de me dizer ao que eu posso assistir ou não. É uma piada, e de muito mau gosto. Last but not least, os colaboradores deste blogue têm todos a mesma posição: somos plenamente a favor do P2P, mas contra a pirataria em escala industrial. Na minha casa não há um único CD ou DVD pirata. Muito bem: jamais pensei que pudesse desejar coisa semelhante, mas o fato é que estou torcendo para que a indústria cinematográfica processe o tal advogado (que é réu confesso) por violação de direitos autorais e por contribuir para o êxito da indústria da pirataria. Ele merece. P.S. (4:45) - Ao checar o atalho desta nota, percebi que a notícia na Folha Online foi atualizada. O advogado paulista em questão também é psicólogo. Talvez isso explique o seu afã em proteger as nossas consciências de influências nefastas com as quais nós, pobrezinhos, não saberíamos lidar.
Spinoza, uma Vida
Simon de Vries, rico comerciante de Amsterdão, quis certa vez doar ao seu amigo Spinoza uma soma de 2.000 florins, mas este recusou; depois quis deixar toda a sua fortuna para o filósofo, que novamente recusou. Sentindo-se próximo da morte (que aconteceu em 1667), de Vries determinou que seu irmão e herdeiro, Isaac de Vries, destinasse a Spinoza uma renda de 500 florins. Spinoza só aceitou receber 300. Ele também cedeu quase toda a sua própria herança às irmãs, e isso mesmo tendo sido obrigado a processá-las, já que elas queriam ficar com absolutamente tudo. Segundo Colerus, seu biógrafo, Spinoza era sóbrio, modesto, afável, não se preocupava em usar roupas elegantes e exortava os amigos a suportar com ânimo as dificuldades da vida. Ao lado disso, Colerus nota, sem aliás condená-los, alguns hábitos bastante repugnantes, como o de se divertir procurando "aranhas que ele fazia entrar em combate, ou moscas que ele jogava na teia" das aranhas... nada, por conseqüência, nos autoriza a crer que Spinoza tenha atingido, neste mundo, a vida bem-aventurada que a Ética declara acessível àqueles que terão seguido sua via. (1) É curioso que o grande professor francês, a despeito de tudo que se pode depreender da obra mas sobretudo da vida de Spinoza, condene-o por tão pouco. Sim, Spinoza punha moscas e aranhas para brigar, e isso, segundo Colerus, lhe dava tanto prazer que por vezes ele ria às gargalhadas. Mas Spinoza não maltratava os bichos: estes é que se maltratavam entre si, pois essa é sua natureza. Spinoza simplesmente estimulava-os a exprimir seus próprios afetos. Ele tinha um olhar ético, e não julgava os seres pelos seus afetos - nem mesmo os homens, que no entanto estão tão aquém de suas possibilidades, e cuja visão Spinoza queria "retificar" por meio de sua Ética. Mas o grande professor francês tinha um olhar moral, e por causa de um detalhe que lhe pareceu "repugnante" não soube compreender o que estava em jogo. (1) ALQUIÉ, Ferdinand - Le rationalisme de Spinoza, Paris, PUF, 1981, p. 14. Referências: COLERUS, Jean - La vie de B. Spinoza, IN SPINOZA, Baruch de - Oeuvres complètes, tradução de Roland Caillois, Paris, Gallimard, 1984 (1954), p. 1320. APPUHN, Charles - Notice sur L'Étique, IN SPINOZA, Baruch de - Ethica / Éthique, edição bilíngue, texto estabelecido e traduzido por Charles Appuhn, Paris, Garnier Frères, 1934, tomo I, p. 4, nota 1. 5.3.04
Henri-Louis Bergson (1859-1941)
Tendo sido um dos filósofos mais célebres de sua época, Henri Bergson "caiu em desgraça" após o término da Segunda Guerra mundial, mas foi (está sendo) "reabilitado" graças a Gilles Deleuze, que entre outros textos publicou, em 1966, "Le bergsonisme". No Brasil, eu fui um dos primeiros (ou talvez o primeiro, mas isso não tem nenhuma importância) a participar dessa "reabilitação" com minha dissertação de mestrado "A noção de virtualidade em Bergson", em 1996. O trecho que reproduzo a seguir (não da minha dissertação, mas do próprio Bergson) mostra ao mesmo tempo a força e a beleza do texto desse grande pensador francês. Não é incomum que eu abra seu livro nessa passagem e, por força das lembranças, comece a chorar antes mesmo de iniciar a leitura. Não se iludam, porém, com a ternura que alguns de seus textos (como este) inspiram. Bem compreendido, o pensamento de Bergson possui uma força comparável à de Lucrécio, Spinoza, Nietzsche e Max Stirner. Infelizmente, sua delicadeza extrema afasta-o cada vez mais da nossa sensibilidade bárbara, digo, moderna. "Nossa liberdade, nos próprios movimentos pelos quais se afirma, cria hábitos nascentes que a sufocarão se ela não se renova por um esforço constante: o automatismo a espreita. O pensamento mais vivaz congelará na fórmula que o exprime. A palavra se volta contra a idéia. A letra mata o espírito. E nosso mais ardente entusiasmo, quando se exterioriza em ação, fixa-se por vezes tão naturalmente num frio cálculo de interesse ou de vaidade, um adota tão facilmente a forma do outro, que nós seríamos capazes de confundi-los, duvidar de nossa própria sinceridade, negar a bondade e o amor, se não soubéssemos que o morto guarda ainda durante algum tempo os traços do vivo. A causa profunda dessas dissonâncias jaz numa irremediável diferença de ritmo. A vida em geral é a própria mobilidade; as manifestações particulares da vida não aceitam essa mobilidade senão a contragosto. Aquela vai sempre adiante; estas gostariam de marcar passo [piétiner] no mesmo lugar. A evolução em geral se faria, tanto quanto possível, em linha reta; cada evolução especial é um processo circular. Como turbilhões de poeira levantados pelo vento que passa, os vivos giram sobre si mesmos, suspensos no grande sopro da vida. Eles são relativamente estáveis, e mesmo simulam tão bem a imobilidade que nós os tratamos como coisas mais do que como progressos, esquecendo que a própria permanência de sua forma não passa do desenho de um movimento. Por vezes, contudo, materializa-se diante de nossos olhos, numa aparição fugidia, o sopro invisível que os carrega. Nós temos essa iluminação súbita perante certas formas de amor materno, tão impressionante, tão comovente também na maior parte dos animais, perceptível até na solicitude da planta para com sua semente. Esse amor, no qual alguns viram o grande mistério da vida, talvez nos expusesse o seu segredo. Ele nos mostra cada geração debruçada sobre aquela que a seguirá. Ele nos deixa entrever que o ser vivo é sobretudo um lugar de passagem, e que o essencial da vida está no movimento que a transmite." Henri Bergson, L'Evolution Créatrice, IN Oeuvres, Paris, PUF, 1984 (1959), p. 603/128. Tradução minha. Existem duas traduções desse livro (A Evolução Criadora) para o português; ele foi publicado pela primeira vez em 1907, ganhou o prêmio Nobel de literatura em 1927 e foi reeditado centenas de vezes na França. P.S. (17/03 - 6:15) Há alguns dias Guilherme sugeriu-me que publicasse minha dissertação numa "livraria virtual". Achei a sugestão muito simpática e fico agradecido por ela, mas isso não funcionaria. Odeio a idéia de ficar contando uns trocadinhos, sobretudo enquanto terceiros lucram com o meu trabalho e prováveis leitores duros ficam chupando o dedo: prefiro oferecer a minha dissertação de graça, "sob os termos da LPC". Lá para o final do ano ela estará online, muito embora sem qualquer revisão, já que tenho outros projetos para tocar. |