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23.3.04

A ferida propriamente filosófica

O esquecimento não é algo de passivo como a maioria das pessoas pensa. Ele é uma força ativa que "apaga" a memória dos traços e cala o ressentimento. Se não fosse pelo esquecimento, um homem permaneceria investindo a memória de suas experiências ao invés de investir um presente continuamente renovado. O esquecimento é condição de possibilidade para a energia nobre - e a nobreza da energia, como sabem os físicos, é sua potência de metamorfose, sua capacidade de mudar, de transformar-se.

É claro que é difícil esquecer feridas recentes. Toda convalescência toma tempo. Mas pior do que ficarmos temporariamente ressentidos por alguma razão é não admitirmos, ao menos para nós mesmos, nossa doença. Reconhecê-la é o primeiro passo para a cura.

Até aí, nada de mais. O que acaba de ser dito (no segundo parágrafo, não no primeiro) poderia ter sido dito por qualquer guru de almanaque. Mas a partir de agora o ar se tornará cada vez mais rarefeito. Os de constituição mais delicada poderão precisar de máscaras de oxigênio.

A maioria dos homens só conhece feridas pessoais. Muitos passam a vida acusando os demais (ou a si mesmos) pelo seu sofrimento, e de acusação em acusação, de tanto futucarem a ferida, aumentam esse sofrimento e propagam sua doença: "É tua culpa", "É minha culpa", todo o drama (e também a comédia) do ressentimento e da má consciência. Mas alguns, sem dúvida, conseguem ou bem a proeza de curar suas feridas, ou bem conviver com elas causando o mínimo de dano possível a si mesmos e aos demais. Seja como for, não saímos aqui da esfera das feridas pessoais, das mágoas pessoais, da dor pessoal, da vida pequena e pessoal.

Mas há um homem cuja ferida é muito mais difícil de curar. Ele está menos doente de si mesmo do que doente do próprio Homem, que, como sabemos, é a doença de pele da Terra. Sua ferida não é pessoal, ela é, por assim dizer, uma ferida cósmica - na medida em que o Homem, essa espécie repugnante que pulula num grão de poeira, é o universo em que vivem os homens. A ferida desse homem é o próprio Homem. Ora, esse homem, ferido de morte não por uma ofensa ou uma mágoa pessoal, mas pelo próprio Homem, só pode curar-se curando o próprio Homem; mas nenhum homem tem poder suficiente para curar o Homem, para de um golpe mudar a condição humana. Tudo o que ele pode é esforçar-se para fazer esse movimento, e nisso dar o melhor de si, mas ele sabe (ou deveria saber) quão limitadas são as suas forças. Curar a si mesmo, curar-se de suas pequenas feridas pessoais, isso é apenas o primeiro passo. O passo seguinte é criar alguma coisa tão cheia de virtude (no sentido renascentista) e tão luminosa em entendimento que seja capaz de participar desse movimento de cura do Homem. Tarefa absurda, quimérica, monstruosa. Esse homem é o filósofo, e essa é a tarefa da Filosofia tal como eu a entendo.

O filósofo, é claro, também tem suas feridas pessoais. E é claro que ele está melhor equipado do que ninguém para curar as suas feridas pessoais. Mas o problema é que cada ferida pessoal, num filósofo, entra em ressonância com sua Ferida, que só faz crescer. Cada pequena mágoa de um filósofo desperta um pequeno demônio que não faz outra coisa senão sussurrar-lhe no ouvido: "É inútil tua luta, eu to disse e continuo dizendo, é completamente inútil; o Homem é uma doença incurável, e tu deves o quanto antes morrer de tua Ferida se não quiseres sofrer ainda mais."

O filósofo sabe que suas pequenas feridas pessoais pertencem à sua pequena e limitada vida pessoal. Ele está habituado a cicatrizá-las no devido tempo. Só que isso não torna as coisas mais fáceis para ele, pois cada mágoa escarifica ainda um pouco mais sua Ferida, e redobra os ardores de seu pequeno demônio.

Para prosseguir em sua tarefa insana o filósofo precisa ser capaz de amar aquilo que despreza, pois o cinismo e a derrisão seriam sua morte em vida, e portanto uma vitória de seu pequeno demônio. O filósofo precisa ser capaz de amar sua própria Ferida.



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