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4.4.04

Uma péssima notícia para George Michael

George Michael revelou que ele e seu companheiro Kenny Goss transam freqüentemente com outros homens. "Nenhum de nós pratica a monogamia. Bem, se algum de vocês pratica, é muito triste, não?" (Fonte: Mundo Mix)

O que é a moral? A definição mais simples possível de moral é: supor que temos uma essência a ser realizada e supor que a adesão a determinados valores conduz à realização dessa essência. Não quero me estender sobre isso agora; hoje ficaremos somente num exemplo. Durante séculos a moral vigente dizia: "A essência da sexualidade humana só pode realizar-se no casamento monogâmico, e qualquer outra maneira de conduzir um relacionamento amoroso é imoral, indecente e indigno da condição humana."

Pois bem. Hoje a moral diz: "A essência da sexualidade só pode realizar-se na multiplicidade de parceiros; a monogamia é careta, tediosa e triste." Essa é a idéia que a mídia nos vende e que nós, pobres sujeitos simplórios e ingênuos, aceitamos alegremente, achando que com algumas trepadas escaparemos ao plano da moral. Só que continuamos pensando em termos de uma essência e sua realização, e continuamos a julgar os outros a partir de nossos próprios valores ao invés de entender a singularidade dos afetos.

Não, senhor George Michael. Triste é trepar mal, é trepar sem vontade. Triste é não fazer de cada trepada a mais intensa celebração da vida. O resto é balela de moralistas, seja lá qual for a idéia que tenham sobre a "essência" da sexualidade e sobre os valores capazes de realizá-la. E sob esse ponto de vista, meu caro, não há nenhuma diferença entre você e o mais empedernido e ensebado representante do velho mundo: ambos são reacionários da pior espécie, ambos querem nos vender os seus próprios valores como se fossem valores universais. E se trepar mal é triste, muitíssimo mais triste é a moral e seu séquito de valores, a moral e o sistema do juízo.

Meus leitores, sagazes que são (ou não seriam meus leitores), já devem a esta altura estar aplicando o mesmo raciocínio a outras questões para ver se ele funciona. Por exemplo: um heterossexual que proclame a heterossexualidade como sendo a "verdade" da sexualidade humana é tão estúpido e moralista quanto um bissexual que proclame a bissexualidade como "verdade" da sexualidade humana. Pois não há verdade da sexualidade humana, assim como não existe "opção" sexual: o "livre arbítrio" simplesmente não existe, e a liberdade, como demonstrou Spinoza, é algo muito mais complexo.

O problema dos valores (e do valor dos próprios valores) é talvez o mais delicado e crucial problema da existência. Aderir a valores - quaisquer que sejam - é a morte (niilismos negativo e reativo): julgar, julgar, julgar tudo e todos em nome de nossos valores, até que terminemos por nos matar em nome deles. Abominável necessidade de julgar. Mas recusar todos os valores também pode ser a morte (niilismo passivo e niilismo ativo sob seus aspectos mais destrutivos). O desafio supremo é passar do plano da moral ao plano ético, do plano da palavra de ordem ao plano do entendimento. Se não estivermos à altura desse desafio, ou morreremos todos ou viveremos todos uma existência de pesadelo.

É isso. Vou deixar para vocês uma última dica. É horrível levar-se a sério, é horrível ser um homem vaidoso e inflado como um pavão - mas quem se leva a sério é justamente o homem entupido de valores. Relaxem. Riam de si mesmos. Mas o pensamento, ah, o pensamento, levem-no mortalmente a sério. Compreendam esse paradoxo antes que seja tarde para todos nós.

E agora, a despedida. Adoro escrever, é algo que faço com gosto e paixão. E publicar com tanta facilidade o que escrevo, como faço aqui, simplesmente "porque sim", pela gozo da expressão e não por uma finalidade qualquer, realmente me dá tesão. Mas agora eu realmente tenho que ir. Tenho que terminar minha tese, e esta é minha última chance para fazê-lo. Voltarei apenas para anunciar algumas traduções que estou fazendo, e depois em agosto ou setembro, para convidar todo mundo para a defesa. Forte abraço e até lá.

P.S. (18/04/2004) - Relendo este texto percebi que um ponto essencial não ficou tão bem explicado quanto poderia. Trepar com várias pessoas ou trepar com uma só pessoa é uma questão de afeto: afetar-se por várias pessoas, afetar-se por uma só pessoa. Mas quando tentamos transformar os nossos afetos, que são sempre singulares, em regras universais, quando desqualificamos os afetos alheios em função dos nossos, nós estamos estabelecendo valores, e portanto recaindo no plano da moral.

É por isso que (por exemplo) a primeira regra do eterno retorno (faça o que quiser, mas faça-o de tal modo - com tal intensidade - que você seja capaz de querer seu eterno retorno) não é um preceito moral, mas uma regra ética (aliás uma paródia do imperativo categórico kantiano). Trata-se porém apenas da primeira regra. A segunda é ainda mais decisiva, porém bem mais complicada. Um capítulo da minha tese será dedicado a esse tema.



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