online
::::c::::a::::o::::s::::m::::o::::s:::: Caô Press

30.5.04

Os signos da arte

"Swann considerava os motivos musicais como verdadeiras idéias, de um outro mundo, de uma outra ordem, idéias veladas de trevas, desconhecidas, impenetráveis à inteligência, mas que nem por isso deixam de ser perfeitamente distintas umas das outras, desiguais de valor e significado. Ao fazer tocar de novo a pequena frase, após a reunião dos Verdurin, procurara saber de que modo ela o aliciava e envolvia, como um perfume, uma carícia, e averiguara que era ao leve afastamento das cinco notas que a compunham e ao retorno constante de duas entre elas que se devia aquela impressão de retraída e trêmula doçura; mas na verdade sabia que assim raciocinava, não sobre a própria frase, mas sobre simples valores que colocara, para comodidade da inteligência, no lugar da misteriosa entidade que havia vislumbrado, antes de conhecer os Verdurin, naquela reunião em que ouvira a sonata pela vez primeira. Sabia que até a lembrança do piano falseava ainda mais o plano em que via as coisas da música, que o campo aberto ao músico não é um mesquinho teclado de sete notas, mas um teclado incomensurável, ainda quase completamente desconhecido, onde apenas aqui e ali, separadas por imensas trevas inexploradas, algumas dos milhões de teclas de ternura, de paixão, de serenidade que o compõe, cada qual tão diferente das outras como um universo de outro universo, foram descobertas por alguns grandes artistas que, despertando em nós o correspondente do tema que encontraram, nos prestam o serviço de mostrar-nos que riqueza, que variedade oculta, sem o sabermos, essa grande noite indevassada e desalentadora de nossa alma, que nós consideramos como vácuo e nada. (...) Talvez o nada é que seja a verdade e todo o nosso sonho não exista, mas sentimos que então essas frases musicais, essas noções que existem em função do sonho, não hão de ser nada, tampouco. Pereceremos, mas temos como reféns essas divinas cativas que seguirão a nossa sorte. E a morte com elas tem alguma coisa de menos amargo, de menos inglório, de menos provável, talvez."


Marcel Proust: No caminho de Swann, trad. de Mário Quintana, PoA/Rio, Ed. Globo, s/d, 9ª edição, p. 290-291.



Site Meter