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::::c::::a::::o::::s::::m::::o::::s:::: Caô Press

17.6.04

Esboço para um prefácio ao livro de um amigo

Por que alguém contaria num romance a história de sua vida? Escrever não é mergulhar num virtual, e retirar de si mesmo uma infinidade de vidas embrionárias, atualizando e explicando (no sentido etimológico da palavra) autênticas entidades, seres não-nascidos tão diferentes entre si quanto uma galáxia de outra, criando todo um mundo de diferenças absolutamente real porque originado na mesma fonte de onde saem todos os mundos conhecidos e desconhecidos?

Poderia ser vaidade se se tratasse ainda de exaltar um eu que se reconheceria e se faria reconhecer na trama de uma narrativa, do prazer de exibir ao mundo uma trajetória épica pela qual o escritor forjasse uma identidade gloriosa. Mas se o eu em questão já foi humilhado e destroçado impiedosamente, se dele já não resta senão um simulacro, preservado exclusivamente para ludibriar os psiquiatras de plantão, então sentimos que não é disso que se trata.

Mas então... por quê? Em primeiro lugar, pode-se invocar a experiência. Quem escreve sobre sua vida escreve sobre acontecimentos, sobre vivências, e não sobre meros fantasmas subjetivos. Só que não há diferença essencial entre a experiência de um puro virtual que se atualiza e a experiência que carregamos em nossa carne e em nossa alma. E é justamente por isso que a literatura pode ser uma experiência tão intensa, para quem lê e sobretudo para aquele que escreve: pois trata-se de (imprevisível) produção de real, e não de produção de fantasmas.

Assim, se nem mesmo a experiência é um critério suficiente, aquele que escreve sobre sua vida há de ter um motivo muito bom para fazê-lo. Obviamente, ter tido uma vida, e não uma dessas contrafações com as quais geralmente nos contentamos, parece-me constituir uma condição necessária. Mas a condição necessária está longe de ser uma condição suficiente, e para dificultar tudo, não há como ensaiar uma resposta universalmente válida. Cada qual que está a escrever sobre sua vida que ensaie a sua, se é que isso lhe parece realmente importante. Pois a única questão decisiva é saber se iremos escrever - seja lá sobre o que for - com nossos fantasmas ou com nosso sangue.



"É a arte de uma classe dominante, essa prática do vazio como economia de mercado: organizar a falta na abundância da produção, fazer todo desejo cair no grande medo de faltar, fazer o objeto depender de uma produção real que se supõe exterior ao desejo (as exigências da racionalidade), enquanto a produção do desejo passa para o fantasma (nada além do fantasma)."

DELEUZE e GUATTARI - L'Anti-Oedipe, Capitalisme et Schizophrénie, Paris, De Minuit, 1972, p. 29.



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