::::c::::a::::o::::s::::m::::o::::s:::: Caô Press |
27.7.04
Humberto Maturana e Ximena Dávila
Não vou reproduzir aqui a ordem dos argumentos apresentados na bela conferência desses dois pensadores chilenos, realizada ontem no Teatro da UFF. Quero apenas pontuar algumas questões que me interessam muito de perto e que estiveram, de algum modo, presentes na fala dos conferencistas. Recusar todos os valores não é necessariamente niilismo ou indiferença. Ao contrário, se o decisivo é a experiência, a prática, se o decisivo é valorar (aqui, agora, e a cada momento), ou seja, valorizar o acontecimento tal como ele se apresenta, então fixar valores - quaisquer que sejam - revela-se uma prática mortífera. Na medida em que carregamos a bandeira de nossos valores, e julgamos os demais a partir de sua adequação ou inadequação aos nossos valores, escapa-nos a oportunidade de valorizar a experiência concreta, a oportunidade de valorizar o outro para além de todo valor. Escapa-nos, assim, o afeto e o entendimento do outro, justamente aquilo que poderia fazer a diferença. Vivemos numa cultura de morte. Enquanto pregamos nossos ideais, nossos valores, nossas idéias a respeito daquilo que é certo ou errado, praticamos uma vida mesquinha, limitada, estupidamente arrogante e agressiva, fundada na desvalorização do outro... e de nós mesmos. Ximena Dávila disse a certa altura algo muito bergsoniano: se nós somos seres essencialmente criativos, como se explica que façamos, por exemplo, "cursos de criatividade"? O que se passou para que chegássemos a esse ponto? Entre tantas respostas possíveis a essa questão, agrada-me a de Antonin Artaud em "O Teatro e a Cultura" (introdução a O Teatro e seu Duplo). Nós transformamos a cultura (e o saber em geral) em um valor (e, portanto, também em uma mercadoria), ao invés de tomá-la como uma experiência viva e como um trampolim que nos permita saltar no desconhecido. Tornamo-nos doutores e passamos a ter medo de falar bobagens, preocupando-nos muito mais com a nossa "reputação" perante os demais doutores (que se limitam a comentar as bobagens alheias) do que com a criação. E infundimos em nossos alunos esse medo de falar bobagens, castrando-os desde cedo, ao invés de mostrar-lhes que o essencial é progredir - de bobagem em bobagem - até o ponto em que nossas bobagens passem a fazer, quem sabe, algum sentido, e se tornem elas mesmas forças transformadoras, ou seja, precisamente, cultura. Mas o decisivo, aqui (e em toda parte), como Maturana e Dávila souberam mostrar muito bem, é o desejo. Diga-me o que desejas e eu te direi que mundo queres produzir. Não existe um mundo pré-existente ao qual tenhamos que nos adaptar. Nós produzimos (localmente, é bem verdade) o mundo em que vivemos. Nós produzimos um mundo próprio que se insere (modificando-o) em um "meio ambiente" mais amplo. Por isso mesmo, o que faz a diferença é aquilo que fazemos em nossa prática concreta de todos os dias, e não os valores que "assumimos" e em nome dos quais estamos dispostos a nos matar uns aos outros. Daí a importância da linguagem (ou, segundo o neologismo dos conferencistas, o "linguagear") como pragmática, como potência de relação, de produção de mundos. Não o "amor" como valor supremo e mandamento (Lawrence já dizia que é absurdo fazer do amor uma obrigação), mas o amar como prática concreta. É bastante provável que muitos doutores achem tudo isso muito piegas, mas somente porque eles sequer perceberam onde está o problema. Site de Humberto Maturana e Ximena Dávila: http://www.matriztica.org |