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::::c::::a::::o::::s::::m::::o::::s:::: Caô Press

28.9.04


Caô de Andrei Tarkovski em O Sacrifício



Último desejo (nota fúnebre - versão final)

Quando eu morrer, façam do meu corpo o que quiserem: queimem, enterrem, entreguem aos peixes ou aos urubus - não sem antes, claro, aproveitar dele o que puder ser aproveitado.

Só faço questão de uma coisa: que haja velório (pouco importa o local) e que nele se toque um CD que estou preparando. Nada de padres, monges, pastores ou rabinos, a não ser que se disponham a ficar quietos. Leituras de textos outros - de poesia a notícias das páginas de esportes - serão bem-vindas.


Vocês pensam que é fácil produzir a trilha sonora do próprio velório? Não é não. E não se trata apenas da óbvia impossibilidade de colocar tudo o que se ama em um CD de áudio com pouco mais de uma hora de duração.

Em primeiro lugar, seria muito fácil (extremamente fácil) transformar a coisa toda num lastimável espetáculo de mau gosto. A meu ver, três seriam os maiores perigos: introduzir na seleção músicas de caráter fúnebre, grandiloqüente ou sentimental.

Nada de réquiens ou marchas fúnebres, portanto; até mesmo o sinistro (e genial) terceiro movimento do Concerto para cordas, percussão e celesta, de Bártok, soaria deslocado. Mas se é assim... por que consta da seleção a versão eletrônica de Walter Carlos para o Funeral da Rainha Maria, de Purcell? Afinal, quem me conhece sabe que não tenho veleidades de rei - e muito menos de rainha. Só que essa música é na verdade uma singela homenagem à minha própria coleção de mortos. Ah, bom.

Nada de introduzir, por outro lado, algumas das grandiloqüências das quais eu admito (sem maiores problemas) gostar muito: por exemplo, The endless enigma, de Emerson, Lake & Palmer ("you never spoke a word of truth..."), ou mesmo The gates of delirium, do Yes. Isso para não mencionar a quinta, a Tocata e Fuga em Ré menor ou a primeira bachiana, é claro.

Se bem que esse negócio de Yes é mesmo intriga da oposição. Minhas bandas preferidas de rock progressivo sempre foram Pink Floyd (até The Final Cut) e Genesis (até The Lamb Lies Down on Broadway). Ou seja, até a saída, respectivamente, de Roger Waters e Peter Gabriel.

Mas não haveria maior perigo do que introduzir na seleção uma música que se pudesse qualificar de sentimental. Por isso fui forçado a eliminar a belíssima Izlel e Delio Haidutin - que além do mais é cantada em búlgaro, sendo bastante óbvio que eu não faço a mínima idéia do que se diz na letra. Também por isso tive que desistir de A certain kind, do Soft Machine, de Sour Times, do Portishead, de Bold as Love, de Hendrix, e de uma infinidade de outras canções que adoro. Mesmo a minha versão predileta de Django, do Modern Jazz Quartet, pareceu-me inapropriada. Mais valeria introduzir uma música algo sacana, ou seja, em tom de paródia, como La Valse, de Ravel, ou Lonely Woman, de Ornette Coleman. Ou algo de Satie. Ou, ou, ou.

Evidentemente, os limites daquilo que se pode qualificar de sentimental são bastante subjetivos. Starless poderia, por exemplo, cair nessa categoria. Poderia. Mas ela está longe de esgotar-se em sua bela (e soturna) melodia, que aliás não é triste, mas algo melancólica. Para além da linha melódica, no entanto, há a obsessiva guitarra de Fripp, há o solo de sax soprano, a percussão violenta: enfim, para além do lamento, essa música exprime angústia e caos, e isso muda tudo. Sou capaz de escutá-la dez, vinte vezes seguidas sem a mínima sombra de fastio. Por outro lado, o Concierto para quinteto tem passagens francamente sentimentais, mas que importa isso se ela tem acentos francamente brejeiros e termina numa explosão de vida e de afirmação da vida?

Por fim... pode-se estranhar que eu não tenha incluído em minha seleção nenhuma música brasileira. Pô, nem umazinha? Não, nem "umazinha". Lamento muito. Mas também não há uma única música da rica tradição do jazz e do blues, nenhuma música erudita e assim por diante. Ei, são só dez músicas. O que vocês queriam? Se eu fosse um gato, faria sete discos e tudo estaria (mais ou menos) resolvido. Mas eu não sou, e além disso não tenho casa na Itália. Então já está bom demais. ;-)

Ah, claro, os detalhes técnicos. Todas as músicas que não estavam normalizadas em -16 dB RMS (ou algo muito próximo disso) ganharam o devido ajuste, e os bons e velhos Fade In e Fade Out foram aplicados quando necessário. Até aí, nada de mais. Mas se há um toque pessoal nessa coletânea, trata-se de Pow R. Toc H., de cujo trecho final (que eu sempre achei um tantinho chato) suprimi sete segundos. Nada de "fades", foi corte bruto mesmo, bem no meio do referido trecho. Modéstia à parte, é impossível notar a gambiarra.

A propósito: esta nota já estava pronta há meses. Como amanhã caô press será congelado, era hoje ou nunca. Não haverá lugar para esse tipo de bobagem nos próximos blogues. Eu prometo. :-/

Vejo vocês (não, não vejo, hehe, não se preocupem) no meu velório.

01 - Ravi Shankar - Seven and 10 1/2 (do disco Tana Mana)
02 - Genesis - Fly on a Windshield + Broadway Melody of 1974
03 - Walter Carlos - Title Music from 'A Clockwork Orange' (Purcell)
04 - Pink Floyd - Pow R. Toc H. (do disco The Piper at the Gates of Dawn - RIPPED VERSION)
05 - Led Zeppelin - Friends (do disco Led Zeppelin III)
06 - Frank Zappa - Filthy Habits (do disco Sleep Dirt)
07 - Ravi Shankar & Philip Glass - Meetings Along the Edge (do disco Passages)
08 - Pink Floyd - A Saucerful of Secrets (versão em estúdio, do disco homônimo)
09 - King Crimson - Starless (do disco Red)
10 - Astor Piazzolla - Concierto para quinteto (do disco Hora Zero)



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