::::c::::a::::o::::s::::m::::o::::s:::: Caô Press |
29.9.04
Caô Press acaba de ser congelado. Não, não é caô. Esta é a última nota. Viva a criogenia virtual. Viva os insetos no âmbar. É bom esclarecer que não estou partindo para um exílio virtual. Este blogue é que foi, de certa maneira, um exílio, corolário da minha vida. Ao contrário: estou voltando pra casa. Minha casa (nossa casa), claro, tem um endereço, e até um nome: triagem. 1 + 1 + 1 = 1. Meu trabalho (é maravilhoso quando se descobre que uma tese não é um fim, mas um começo) também terá nome e endereço: in vertigo veritas. E, é claro, não se pode viver sem fazer um pouco de bagunça. Para isso, vou montar - talvez ano que vem - um ateliê: o ponto cinza de paul. Lá vou colocar o caos (e os caôs) que não "couberem" nos dois blogues anteriores. Abaixo, uma homenagem ao meu irmão mais velho. Ele não poderá lê-la, mas vocês sim. Abraço forte. José E agora, José? A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou, e agora, José? e agora, você? Você que é sem nome, que zomba dos outros, Você que faz versos, que ama, protesta? e agora, José? Está sem mulher, está sem discurso, está sem carinho, já não pode beber, já não pode fumar, cuspir já não pode, a noite esfriou, o dia não veio, o bonde não veio, o riso não veio, não veio a utopia e tudo acabou e tudo fugiu e tudo mofou, e agora, José? E agora, José? sua doce palavra, seu instante de febre, sua gula e jejum, sua biblioteca, sua lavra de ouro, seu terno de vidro, sua incoerência, seu ódio - e agora? Com a chave na mão quer abrir a porta, não existe porta; quer morrer no mar, mas o mar secou; quer ir para Minas, Minas não há mais. José, e agora? Se você gritasse, se você gemesse, se você tocasse a valsa vienense, se você dormisse, se você cansasse, se você morresse... Mas você não morre, você é duro, José! Sozinho no escuro qual bicho-do-mato, sem teogonia, sem parede nua para se encostar, sem cavalo preto que fuja a galope, você marcha, José! José, para onde? Carlos Drummond de Andrade (1942) IN Poesia Completa, Rio, Nova Aguilar, 2002, p. 106. 28.9.04
Caô de Andrei Tarkovski em O Sacrifício Último desejo (nota fúnebre - versão final) Quando eu morrer, façam do meu corpo o que quiserem: queimem, enterrem, entreguem aos peixes ou aos urubus - não sem antes, claro, aproveitar dele o que puder ser aproveitado. Só faço questão de uma coisa: que haja velório (pouco importa o local) e que nele se toque um CD que estou preparando. Nada de padres, monges, pastores ou rabinos, a não ser que se disponham a ficar quietos. Leituras de textos outros - de poesia a notícias das páginas de esportes - serão bem-vindas. Vocês pensam que é fácil produzir a trilha sonora do próprio velório? Não é não. E não se trata apenas da óbvia impossibilidade de colocar tudo o que se ama em um CD de áudio com pouco mais de uma hora de duração. Em primeiro lugar, seria muito fácil (extremamente fácil) transformar a coisa toda num lastimável espetáculo de mau gosto. A meu ver, três seriam os maiores perigos: introduzir na seleção músicas de caráter fúnebre, grandiloqüente ou sentimental. Nada de réquiens ou marchas fúnebres, portanto; até mesmo o sinistro (e genial) terceiro movimento do Concerto para cordas, percussão e celesta, de Bártok, soaria deslocado. Mas se é assim... por que consta da seleção a versão eletrônica de Walter Carlos para o Funeral da Rainha Maria, de Purcell? Afinal, quem me conhece sabe que não tenho veleidades de rei - e muito menos de rainha. Só que essa música é na verdade uma singela homenagem à minha própria coleção de mortos. Ah, bom. Nada de introduzir, por outro lado, algumas das grandiloqüências das quais eu admito (sem maiores problemas) gostar muito: por exemplo, The endless enigma, de Emerson, Lake & Palmer ("you never spoke a word of truth..."), ou mesmo The gates of delirium, do Yes. Isso para não mencionar a quinta, a Tocata e Fuga em Ré menor ou a primeira bachiana, é claro. Se bem que esse negócio de Yes é mesmo intriga da oposição. Minhas bandas preferidas de rock progressivo sempre foram Pink Floyd (até The Final Cut) e Genesis (até The Lamb Lies Down on Broadway). Ou seja, até a saída, respectivamente, de Roger Waters e Peter Gabriel. Mas não haveria maior perigo do que introduzir na seleção uma música que se pudesse qualificar de sentimental. Por isso fui forçado a eliminar a belíssima Izlel e Delio Haidutin - que além do mais é cantada em búlgaro, sendo bastante óbvio que eu não faço a mínima idéia do que se diz na letra. Também por isso tive que desistir de A certain kind, do Soft Machine, de Sour Times, do Portishead, de Bold as Love, de Hendrix, e de uma infinidade de outras canções que adoro. Mesmo a minha versão predileta de Django, do Modern Jazz Quartet, pareceu-me inapropriada. Mais valeria introduzir uma música algo sacana, ou seja, em tom de paródia, como La Valse, de Ravel, ou Lonely Woman, de Ornette Coleman. Ou algo de Satie. Ou, ou, ou. Evidentemente, os limites daquilo que se pode qualificar de sentimental são bastante subjetivos. Starless poderia, por exemplo, cair nessa categoria. Poderia. Mas ela está longe de esgotar-se em sua bela (e soturna) melodia, que aliás não é triste, mas algo melancólica. Para além da linha melódica, no entanto, há a obsessiva guitarra de Fripp, há o solo de sax soprano, a percussão violenta: enfim, para além do lamento, essa música exprime angústia e caos, e isso muda tudo. Sou capaz de escutá-la dez, vinte vezes seguidas sem a mínima sombra de fastio. Por outro lado, o Concierto para quinteto tem passagens francamente sentimentais, mas que importa isso se ela tem acentos francamente brejeiros e termina numa explosão de vida e de afirmação da vida? Por fim... pode-se estranhar que eu não tenha incluído em minha seleção nenhuma música brasileira. Pô, nem umazinha? Não, nem "umazinha". Lamento muito. Mas também não há uma única música da rica tradição do jazz e do blues, nenhuma música erudita e assim por diante. Ei, são só dez músicas. O que vocês queriam? Se eu fosse um gato, faria sete discos e tudo estaria (mais ou menos) resolvido. Mas eu não sou, e além disso não tenho casa na Itália. Então já está bom demais. ;-) Ah, claro, os detalhes técnicos. Todas as músicas que não estavam normalizadas em -16 dB RMS (ou algo muito próximo disso) ganharam o devido ajuste, e os bons e velhos Fade In e Fade Out foram aplicados quando necessário. Até aí, nada de mais. Mas se há um toque pessoal nessa coletânea, trata-se de Pow R. Toc H., de cujo trecho final (que eu sempre achei um tantinho chato) suprimi sete segundos. Nada de "fades", foi corte bruto mesmo, bem no meio do referido trecho. Modéstia à parte, é impossível notar a gambiarra. A propósito: esta nota já estava pronta há meses. Como amanhã caô press será congelado, era hoje ou nunca. Não haverá lugar para esse tipo de bobagem nos próximos blogues. Eu prometo. :-/ Vejo vocês (não, não vejo, hehe, não se preocupem) no meu velório. 01 - Ravi Shankar - Seven and 10 1/2 (do disco Tana Mana) 02 - Genesis - Fly on a Windshield + Broadway Melody of 1974 03 - Walter Carlos - Title Music from 'A Clockwork Orange' (Purcell) 04 - Pink Floyd - Pow R. Toc H. (do disco The Piper at the Gates of Dawn - RIPPED VERSION) 05 - Led Zeppelin - Friends (do disco Led Zeppelin III) 06 - Frank Zappa - Filthy Habits (do disco Sleep Dirt) 07 - Ravi Shankar & Philip Glass - Meetings Along the Edge (do disco Passages) 08 - Pink Floyd - A Saucerful of Secrets (versão em estúdio, do disco homônimo) 09 - King Crimson - Starless (do disco Red) 10 - Astor Piazzolla - Concierto para quinteto (do disco Hora Zero) 25.9.04
Esquema labiríntico (simplificado) que ilustra as reações químicas que convertem entre si as pequenas moléculas nas células: ALBERTS, Bruce et alli - Biología Molecular de la Célula, traduzido sob a direção de Mercè Durfort Coll e Miquel Llobera Sande, Barcelona, Ed. Omega, 1986, p. 44. 22.9.04
Nomes, muito mais que nomes
O padre Júlio Lancelotti disse há alguns dias que o que importa é cuidar dos moradores de rua, e não ficar discutindo nomenclaturas. Obviamente, o padre não faz parte do universo de três leitores de caô press, e estava se referindo, provavelmente, à coluna da Folha de São Paulo que eu citei numa nota anterior. Eu não acho que discutir nomenclaturas seja um trabalho mais importante do que o admirável trabalho que o padre Lancelotti realiza, em São Paulo, com menores e moradores de rua. Mas me preocupa perceber que o padre desqualifica essa discussão. Não custa lembrar que, bem antes de mandar suas vítimas para as câmaras de gás e para os fornos crematórios, os nazistas já faziam todo um trabalho de propaganda no plano da linguagem, comparando-as com ratos e insetos. A meu ver - e aqui defendo não apenas a mim mas também o leitor mencionado na coluna da Folha - dar-se ao trabalho de refletir a respeito das nomenclaturas é também manifestar um cuidado com o povo de rua. Aliás, se não fosse assim, o padre Lancelotti não teria razões para rejeitar veementemente que os moradores de rua sejam chamados de mendigos. Devo presumir que apenas ele tem o direito de exercer esse cuidado? E já que estamos retornando a esse tema, não custa mencionar aqui a tenebrosa campanha eleitoral do Sr. Marcelo Crivella à prefeitura do Rio de Janeiro. No programa de TV do candidato photoshop são mostradas algumas imagens de moradores de rua enquanto é dita a seguinte frase: "O Rio de Janeiro é muito mal administrado. Tem até gente morando e evacuando na sua porta." Ao formular o problema desse modo, a campanha do bispo Crivella incita os telespectadores a enxergar o morador de rua tão somente como um fedorento estorvo, e não como um problema social. Trata-se de um problema de limpeza pública, nada mais. Ao invés de evacuarem em suas casas (mas eles não têm casas) ou nos milhares de banheiros públicos espalhados pela cidade (mas não há banheiros públicos na cidade), os moradores de rua insistem em fazê-lo na minha porta. Ou seja, a vítima sou eu - pobrezinho - que tenho que suportar este fedor. Mas um bom prefeito seria capaz de fazer essa limpeza. Como? Pouco importa. A partir do momento em que os moradores de rua forem percebidos, não como gente, não como um problema social, mas como um problema puramente estético-olfativo, abre-se um leque bem maior de opções para a solução do problema. Se tudo o que importa é que a merda desapareça, basta suprimir a fonte do incômodo. Tudo muito simples, rápido e eficiente. Se eu fosse advogado já estaria processando o Sr. Crivella por incitação ao ódio contra uma minoria absolutamente indefesa. Não seria, aliás, a primeira ação do gênero. A Igreja Universal já está enfrentando um processo por incitação ao ódio no Uruguai. ADENDO (23/09/04) Para quem não sabia, o ataque a moradores de rua não é novidade: ver matéria publicada no Consultor Jurídico. Outra matéria interessante - sobre incitação ao ódio e estupidez humana em geral no orkut (where the elite meet) - foi publicada na Carta Maior. 18.9.04
Underwear Goes Inside The Pants - Lazyboy
Why is marijuana not legal? Why is marijuana not legal? It's a natural plant that grows in the dirt. Do you know what's not natural? 80 year old dudes with hard-ons. That's not natural. But we got pills for that. We're dedicating all our medical resources to keeping the old guys erect, but we're putting people in jail for smoking something that grows in the dirt? You know we have more prescription drugs now. Every commercial that comes on TV is a prescription drug ad. I can't watch TV for four minutes without thinking I have five serious diseases. Like: "Do you ever wake up tired in the morning?" Oh my god I have this, write this down. Whatever it is, I have it. Half the time I don't even know what the commercial is... people running in fields or flying kites or swimming in the ocean. I'm like that is the greatest disease ever. How do you get that? That disease comes with a hot chick and a puppy. The schools now... It is all about self-esteem in the schools now. Build the kids' self-esteem, make them feel good about themselves. If everybody grows up with high self-esteem, who is going to dance in our strip clubs? What's going to happen to our porno industry? These women don't just grown on trees. It takes lots of drunk dads missing dance recitals before you decide to blow a goat on the internet for fifty bucks. And if that disappears, where does that leave me on a Friday night with my new high speed connection? Masterminds are another word that comes up all the time. You keep hearing about these terrorists masterminds that get killed in the middle east. Terrorists masterminds. Mastermind is sort of a lofty way to describe what these guys do, don't you think? They're not masterminds. "OK, you take bomb, right? And you put in your backpack. And you get on bus and you blow yourself up. Alright?" "Why do I have to blow myself up? Why can't I just..." "Who's the fucking mastermind here? Me or you?" Americans, let's face it: We've been a spoiled country for a long time. Do you know what the number one health risk in America is? Obesity. They say we're in the middle of an obesity epidemic. An epidemic like it is polio. Like we'll be telling our grand kids about it one day. The Great Obesity Epidemic of 2004. "How'd you get through it grandpa?" "Oh, it was horrible Johnny, there was cheesecake and pork chops everywhere." Nobody knows why we're getting fatter? Look at our lifestyle. I'll sit at a drive thru. I'll sit there behind fifteen other cars instead of getting up to make the eight foot walk to the totally empty counter. Everything is mega meal, super sized. Want biggie fries, super sized, want to go large. You want to have thirty burgers for a nickel you fat mother fucker. There's room in the back. Take it! Want a 55 gallon drum of Coke with that? It's only three more cents. Sometimes you have to suffer a little bit in your youth to motivate yourself to succeed in later life. Do you think if Bill Gates got laid in high school, do you think there'd be a Microsoft? Of course not. You got to spend a long time in your own locker with your underwear shoved up your ass before you start to think, "I'm going to take of the world of computers! You'll see. I'll show them." We're in one of the richest countries in the world, but the minimum wage is lower than it was thirty five years ago. There are homeless people everywhere. This homeless guy asked me for money the other day. I was about to give it to him and then I thought he was going to use it on drugs or alcohol. And then I thought, that's what I'm going to use it on. Why am I judging this poor bastard. People love to judge homeless guys. Like if you give them money they're just going to waste it. Well, he lives in a box, what do you want him to do? Save it up and buy a wall unit? Take a little run to the store for a throw rug and a CD rack? He's homeless. I walked behind this guy the other day. A homeless guy asked him for money. He looks right at the homeless guy and says why don't you go get a job you bum. People always say that to homeless guys "get a job" like it is all that easy. This homeless guy was wearing his underwear outside his pants. Outside his pants. I'm guessing his resume isn't all up to date. I'm predicting some problems during the interview process. I'm pretty sure even McDonalds has a "underwear goes inside the pants" policy. Not that they enforce it very strictly, but technically I'm sure it is on the books. Greg Giraldo (*) Você pode baixar essa música aqui. ( http://images.birdherder.com/lazyboy.mp3 ) Retirado do blogue .just.being.me., de Ariel, uma estudante norte-americana de 17 anos. Underwear Goes Inside The Pants é uma faixa do disco Lazyboy TV. Outras informações, links e comentários no sítio birdherder. Há um link alternativo para download dessa música aqui. ( http://www.adamriff.com/downloads/Lazyboy-Underwear_Goes_Inside_the_Pants.mp3 ) A letra acima foi modificada (em uma ou outra passagem) em função do que se pode ouvir na gravação. Eventuais bedelhos com novas correções serão bem-vindos. Existe um vídeo dessa música, mas não consegui ver (não tenho banda larga), e eu gostaria de encontrar um link para baixar o arquivo. Bedelhos com esse link serão mais do que bem-vindos. :-) (*) Greg Giraldo é o autor da letra e faz o vocal de Underwear Goes Inside The Pants. Ele é um norte-americano de origem latina (pai colombiano e mãe espanhola). Formou-se em Direito (Harvard) e trabalhou algum tempo como advogado, mas abandonou a profissão para tornar-se comediante. Há uma entrevista com ele aqui. 17.9.04
O abecedário de Gilles Deleuze na Uerj
Acontece nos dias 21, 22 e 23 de setembro, terça, quarta e quinta-feira - de 2004 - a exibição integral do vídeo (legendado em português), dividido em três partes, L'Abécédaire pour Gilles Deleuze (1996), em que o filósofo é entrevistado por Claire Parnet (direção de Pierre-André Boutang). Participarão como palestrantes - dois ao dia, após a exibição de cada parte do vídeo - Ricardo Basbaum (UERJ), Jorge Vasconcellos (UGF) e Cláudio da Costa (UERJ), entre outros. O Evento é organizado por Jorge Luiz Cruz, professor do Instituto de Artes da UERJ, e conta com o apoio da SR2 da Universidade. O Evento também presta homenagens ao professor Cláudio Ulpiano, quando será apresentado o livro, no prelo, intitulado Gilles Deleuze: sentidos e expressões, que, além dos textos dos palestrantes do Evento, conta com texto inédito do principal divulgador da obra do filósofo francês no Brasil. Informações no sítio: http://geocities.yahoo.com.br/ncvuerj/. Por Jorge Vasconcellos, via email. 14.9.04
Procura da Poesia
Não faças versos sobre acontecimentos. Não há criação nem morte perante a poesia. Diante dela, a vida é um sol estático, não aquece nem ilumina. As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam. Não faças poesia com o corpo, esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica. Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro são indiferentes. Nem me reveles teus sentimentos, que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem. O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia. Não cantes tua cidade, deixa-a em paz. O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas. Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma. O canto não é a natureza nem os homens em sociedade. Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam. A poesia (não tires poesia das coisas) elide sujeito e objeto. Não dramatizes, não invoques, não indagues. Não percas tempo em mentir. Não te aborreças. Teu iate de marfim, teu sapato de diamante, vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável. Não recomponhas tua sepultada e merencória infância. Não osciles entre o espelho e a memória em dissipação. Que se dissipou, não era poesia. Que se partiu, cristal não era. Penetra surdamente no reino das palavras. Lá estão os poemas que esperam ser escritos. Estão paralisados, mas não há desespero, há calma e frescura na superfície intata. Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário. Convive com teus poemas, antes de escrevê-los. Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam. Espera que cada um se realize e consume com seu poder de palavra e seu poder de silêncio. Não forces o poema a desprender-se do limbo. Não colhas no chão o poema que se perdeu. Não adules o poema. Aceita-o como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada no espaço. Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta, sem interesse pela resposta, pobre ou terrível, que lhe deres: Trouxeste a chave? Repara: ermas de melodia e conceito elas se refugiaram na noite, as palavras. Ainda úmidas e impregnadas de sono, rolam num rio difícil e se transformam em desprezo. Carlos Drummond de Andrade - A Rosa do Povo (1945) IN Poesia Completa, Rio, Nova Aguilar, 2002, p. 117 (presente - de lavar a alma - da minha amiga Marianna.) Os estóicos fazem uma distinção entre o puro Acontecimento e sua atualização num estado de coisas. É desse acontecimento encarnado num estado de coisas que Drummond está falando: pouco importa a minha dor de dentes ou o meu amor por Maria, pouco importam os sentimentos ou as idéias ou os conceitos ou as lembranças que tenho da minha dor de dentes ou do meu amor por Maria. Mas se do meu amor por Maria (e até mesmo da minha irrisória dor de dentes) eu consigo extrair aquela parte do Acontecimento que nenhuma atualização esgota, aquela parte translúcida, cristalina, que mora em parte alguma - no limbo - bingo? Difícil demais, esse rio. Não me atrevo. Se atrevo, intruso. Antes de mais nada, banho de sal grosso no mar da prosa. Pedaços de placenta arrancados de toda parte, costurados, amalgamados, e, quem sabe, de tudo isso, os olhos fechados de um não-nascido. 13.9.04
Mundo grande
Não, meu coração não é maior que o mundo. É muito menor. Nele não cabem nem as minhas dores. Por isso gosto tanto de me contar. Por isso me dispo, por isso me grito, por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias: preciso de todos. Sim, meu coração é muito pequeno. Só agora vejo que nele não cabem os homens. Os homens estão cá fora, estão na rua. A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava. Mas também a rua não cabe todos os homens. A rua é menor que o mundo. O mundo é grande. Tu sabes como é grande o mundo. Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão. Viste as diferentes cores dos homens, as diferentes dores dos homens, sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso num só peito de homem... sem que ele estale. Fecha os olhos e esquece. Escuta a água nos vidros, tão calma. Não anuncia nada. Entretanto escorre nas mãos, tão calma! vai inundando tudo... Renascerão as cidades submersas? Os homens submersos - voltarão? Meu coração não sabe. Estúpido, ridículo e frágil é meu coração. Só agora descubro como é triste ignorar certas coisas. (Na solidão de indivíduo desaprendi a linguagem com que homens se comunicam.) Outrora escutei os anjos, as sonatas, os poemas, as confissões patéticas. Nunca escutei voz de gente. Em verdade sou muito pobre. Outrora viajei países imaginários, fáceis de habitar, ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando ao suicídio. Meus amigos foram às ilhas. Ilhas perdem o homem. Entretanto alguns se salvaram e trouxeram a notícia de que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias, entre o fogo e o amor. Então, meu coração também pode crescer. Entre o amor e o fogo, entre a vida e o fogo, meu coração cresce dez metros e explode. - Ó, vida futura! Nós te criaremos. Carlos Drummond de Andrade - Sentimento do Mundo (1940) IN Poesia Completa, Rio, Nova Aguilar, 2002, p. 87 (presente - de tirar o fôlego - da minha amiga Marianna.) 10.9.04
A sobrevivência não é um bom critério
"As formas vivas são, por definição, formas viáveis. Seja lá como for que se explique a adaptação do organismo às suas condições de existência, essa adaptação é necessariamente suficiente a partir do momento que a espécie subsiste. Nesse sentido, cada uma das espécies sucessivas que a paleontologia e a zoologia descrevem foi um sucesso obtido pela vida. Mas as coisas tomam um aspecto inteiramente distinto quando se compara cada espécie ao movimento que a colocou em seu caminho, e não mais às condições em que ela se inseriu. Freqüentemente esse movimento foi desviado, freqüentemente também ele foi claramente interrompido; o que deveria ser apenas um lugar de passagem tornou-se o termo. Desse novo ponto de vista, o insucesso surge como regra, e o sucesso como excepcional e sempre imperfeito." Henri BERGSON - L'Évolution Créatrice, IN Oeuvres, Paris, PUF, 1984 (1959), p. 605/130. 9.9.04
Mas os templos são de pedra
Deu hoje no UOL: "Filme de Padre Marcelo bancará a construção de um megatemplo". Faz sentido. Templos atraem fiéis, e megatemplos atraem megamultidões. Usar o dinheiro para construir casas populares ou hospitais ou escolas ou centros culturais ou praças de esporte seria um tremendo desperdício. Deus seja louvado.
Morador de rua ou "pessoa em abandono"?
No dia 3 de setembro Barbara Gancia escreveu na Folha de São Paulo: Eu já andava meio encafifada com o uso do termo politicamente correto "morador de rua" para designar mendigo quando recebi um e-mail do senhor José Vieira Rocha Jr. dizendo o seguinte: "A locução é contraditória em termos. É rua ou é moradia. Morar implica fixar-se. Rua, por definição, é caminho, é via de passagem. Ademais, rua é coisa pública, jamais disponível a ser apoderada pelo particular". Ele diz ainda: "O uso impensado do vernáculo escancara nossa acomodação diante do fenômeno. Fugimos à reflexão e fingimos compreensão quando mascaramos a realidade". O senhor Vieira sugere que, em vez do pejorativo "mendigo" ou do equivocado "morador de rua", se passe a usar "pessoa em abandono". Note-se, em primeiro lugar, que a colunista refere-se à expressão morador de rua como um "termo" (sic) politicamente correto "para designar mendigo". Ou seja, ao pé da letra, o morador de rua é antes de mais nada um mendigo... que nossa correção política achou por bem designar como "morador de rua". Só que a população de rua é extremamente heterogênea. Nem todo morador de rua é mendigo, e só quem morou na rua (ou quem conhece muito bem o assunto) sabe quão variadas são as maneiras de se sobreviver na rua - nem todas desonestas ou degradantes, diga-se de passagem. A análise do Sr. José Vieira, por sua vez, é puramente verbal, e no pior sentido da palavra. Se a levássemos a sério, teríamos que abolir igualmente a (bela) expressão "cidadão do mundo", que também é uma contradição nos termos. Por outro lado, já não poderíamos ensinar às crianças que as tartarugas "moram" em seus cascos, e sobretudo já não poderíamos dizer que alguém mora num trailer. Dizer que a rua é pública e não pode ser "apoderada" por um particular até faz sentido quando se pensa em termos de propriedade, mas é uma asneira sem tamanho quando se pensa em termos de posse. Quem anda pelas ruas se "apodera" do espaço que lhe cabe, tal como quem senta num banco de praça ou dorme sob uma marquise. Enfim, lá onde o Sr. Vieira vê apenas uma oposição rígida entre passagem e fixidez, existe toda uma gradação de territorialidades moventes. Em resumo, a expressão "morador de rua", ainda que seja uma contradição nos termos - ou por isso mesmo - possui a carga dramática necessária para comunicar (de maneira rigorosa) a situação de quem vive nas ruas. Apenas a expressão "vivente de rua" (que é obviamente impraticável) poderia substitui-la. Mas e quanto à expressão proposta pelo Sr. Vieira, "pessoa em abandono"? Eu diria que ela não possui especificidade suficiente para caracterizar o fato de se estar vivendo na rua. Pode-se encontrar "pessoas em abandono" com endereço fixo - seja em palácios, em barracos ou apartamentos de classe média. Inversamente, há casos em que o morador de rua não é uma "pessoa em abandono" coisíssima nenhuma. Ao contrário, ele é que abandonou o mundo (a família, o emprego, etc.) e sua insanidade. Ele escolheu viver à margem. Na perspectiva dele, quem está abandonado à sua própria sorte é o mundo. Pode-se objetar, é claro, que o "abandono" não é apenas subjetivo, mas diz respeito ao desamparo material em que o morador de rua se encontra. Ora, nesse caso é que a expressão não se sustenta por um minuto sequer. Um trabalhador sem plano de saúde não seria uma "pessoa em abandono"? Comecei a escrever um poema sobre tudo isso, mas a poesia soçobrou e só sobrou isto: Rua Coisa pública, exposta, arreganhada aos transportes das gentes e dos bichos que passam, úmidos e sedentos, em busca do que passe em suas veias abertas. 7.9.04
Dois testemunhos sobre o hip-hop norte-americano
A cultura é uma arma. Como uma espada de dois gumes, a cultura pode ser manipulada para que nós, os oprimidos, ganhemos a batalha da autodeterminação ou para que nossos opressores nos mantenham escravizados. Originalmente o hip-hop era uma fonte de força em nossa comunidade. Criado nas ruas por jovens comuns, ele desafiou o status quo. A partir de praticamente nada - nenhum dinheiro, nenhum instrumento musical, nenhum conglomerado multinacional ou conexões políticas - ele emergiu como uma força cultural internacional. O hip-hop exemplificava a criatividade inata, a consciência social e a autodeterminação de nossa gente. Ele era a voz de nossa resistência. Agora que o hip-hop é totalmente controlado por grandes corporações internacionais, os "artistas" promovidos pelos empresários do setor refletem uma criminalidade mesquinha e superficial e um materialismo individualista e vulgar que desgasta nossa luta coletiva. Amadi Ajamu, escritor norte-americano A música negra era a mais inspiradora do mundo, mas agora se transformou na mais destrutiva do planeta. Brian Hargrove, diretor musical do Public Enemy Fontes: Matéria de Alejandra Villasmil no UOL Música Uma análise da liderança de Russell Simmons, artigo de Amadi Ajamu (em inglês)
King Crimson: 21st Century Schizoid Man (Fripp/Sinfield/McDonald/Lake/Giles)
Cat's foot iron claw Neuro-surgeons scream for more At paranoia's poison door Twenty first century schizoid man. Blood rack barbed wire Politicians' funeral pyre Innocents raped with napalm fire Twenty first century schizoid man. Death seed blind man's greed Poets' starving children bleed Nothing he's got he really needs Twenty first century schizoid man. 5.9.04
3.9.04
Intensificar a vida
Que bom ser "bedelhado" de maneira tão gentil. Quanto aos "super capitalistas", eu diria o seguinte. Quando escrevemos ou dizemos alguma coisa, não podemos impedir que os outros se apropriem do nosso discurso e o "usem" para seus próprios fins. Eu não posso (nem quero), por exemplo, impedir que um guru (ou um "antiguru") se aproprie do que eu digo. Do mesmo modo, não posso impedir que outras pessoas façam suas comparações e analogias. Tudo o que posso fazer é marcar a minha diferença: para mim, o lucro não é a finalidade da vida. Aliás, nem mesmo estou certo de que o lucro deva ser a finalidade das empresas, talvez um outro modelo fosse possível, talvez fosse possível conciliar iniciativa privada e aquilo que eu creio ser o (simulacro de) sentido e finalidade da vida: intensificar a própria vida. Seria possível, por exemplo, fazer coincidir produção social e produção desejante? É por isso que as idéias e o trabalho de Ricardo Semler me chamam a atenção. Ele é um homem de entendimento em meio aos inumeráveis brucutus do mercado. Mas intensificar a vida, fazê-la escorrer "sob o signo da verdadeira magia", nós sequer temos idéia do que seja isso. Estamos ocupados demais tentando preencher nossas faltas, imaginárias ou não, tentando saciar nossa sede de reconhecimento simbólico (ou nossa fome) para ter idéia, ou melhor, para ter um mero pressentimento do que a vida poderia ser. 30.8.04
Entender a vida
A grossa maioria das pessoas intelectualizadas que conheci até hoje pensa que o trabalho do entendimento se resume à compreensão daquilo que está nos livros. Cada qual encontra no "seu" livro ou no "seu" pensador predileto a "sua" doutrina, a sua "verdade", que passa a ser o alfa e o ômega da própria realidade. (Calma, direi mais à frente o que entendo pela palavra "realidade".) Para estes, interpretar a realidade é forçá-la a adequar-se aos seus conceitos, ou seja, julgar. Independentemente de sua erudição ou de sua capacidade intelectual, são todos crentes - ou, em linguagem filosófica, dogmáticos. Uma pequena minoria dos chamados intelectuais é bem mais inteligente e flexível, mas às custas de sacrificar a própria possibilidade do entendimento. Eles são ligeiros, e mesmo divertidos, mas apenas porque para eles não há absolutamente nada a entender, e o pensamento não passa de um divertido jogo de palavras. Esses são os céticos. Mas para eles, muitas vezes, o próprio ceticismo é um dogma e ainda uma prisão. Ainda que só possamos compreender a realidade por meio de conceitos, entender a realidade não é entender conceitos. Os conceitos são os óculos ou as lunetas de que nos servimos para enxergar a realidade, mas entender a realidade - entender o devir, as singularidades - é ser capaz de inventar uma nova compreensão para cada nova realidade com que nos deparamos. Pode-se dizer do pensamento exatamente a mesma coisa que Bergson disse sobre o tempo: ou ele é invenção ou não é nada. Mas nós preferimos repetir nossos mestres a entrar nessa aventura que se confunde com a mais alta aventura da vida. Mandar os próprios mestres à merda (por melhores que sejam e sobretudo se são ou foram os melhores) é a única maneira de honrá-los. Contentar-se em repetir o que eles disseram (ao invés de fazer o que eles fizeram) equivale a congelar em fórmulas aquilo que deveria ser fogo em estado puro. Percebem? O que está em questão aqui não é a teoria do conhecimento, mas a ética. 19.8.04
Num relógio é quatro e vinte, no outro é quatro e meia: é que de um relógio pra outro as hora vareia A EMI lançou pela série "BIS" (e está vendendo a preço de camelô) um CD duplo com uma coletânea do extraordinário Adoniran Barbosa. Na verdade esse CD é quase idêntico aos dois CDs lançados em 1999 na série "Meus Momentos". Infelizmente, porém, ele é "quase idêntico" por estranhas razões. Claro, existem as diferenças de repertório. No CD "Meus momentos" havia 31 músicas, nesse há apenas 28. Quatro músicas que estão no CD "Meus momentos" (Vila Esperança, Não quero entrar, Pafunça e No morro do Piolho) estão ausentes no CD "BIS"; em compensação, este traz Nóis viemos aqui pra quê?, ausente naquele. Mas o mais estranho é que quase todas as músicas no CD "BIS" tem um ou dois segundos a menos. Para tirar as dúvidas, fiz cópias digitais dos quatro CDs com o EAC e comparei todas as faixas comuns aos dois lançamentos. Para resumir a conversa, algumas faixas do CD "BIS" foram editadas e perderam um segundinho final por meio de um "fade out". O caso mais estranho é o de Triste Margarida (samba do metrô) - aliás, uma das raras faixas cujo tamanho coincide em ambos os CDs: exatos 26.972.780 bytes. E, no entanto, na edição "BIS" não se ouve Adoniran pronunciar a última palavra ("margarida"). Para quem duvida do que estou dizendo e quer um exemplo rápido (e contundente) desse gênero de "manipulação sonora", recomendo a audição da faixa Nóis viemos aqui pra quê?, que está no CD "BIS", e sua comparação com aquela saiu no CD "Adoniran Barbosa", produzido em 2002 pela Som Livre. Trata-se da mesmíssima gravação, e é muito fácil verificar que o final da faixa publicada pela Som Livre foi mutilado. Matematicamente falando, faltam ali 366.912 bytes. Eu não ignoro que as gravadoras podem invocar razões artísticas para fazer essas edições. Aliás, eu não sou platônico e portanto não sou partidário das "purezas do original". No entanto, uma vez que essas canções são um "patrimônio imaterial" da cultura brasileira, eu adoraria ver nos CDs uma indicação clara de que as músicas foram manipuladas, ou seja, de que elas não são idênticas às faixas originais. Se as coisas fossem feitas assim, de maneira transparente, eu poderia escolher que versão levar para casa. Mas, ao contrário, o que mais se vê são encartes sem nenhuma informação e encartes com informações errôneas e/ou incompletas. Creio que já está mais do que na hora de ver a cultura brasileira receber o respeito que merece, e não estou pedindo aqui encartes luxuosos, estou pedindo apenas o básico: informação de qualidade sobre o material sonoro publicado. Isso não acarreta nenhum custo adicional e, como dizem os homens de cinza, "agrega um valor" enorme ao produto final. Enquanto isso não acontecer, as gravadoras continuarão merecendo ouvir de nós estes versinhos do grande Adoniran: Pafunça, que pena, Pafunça, que a nossa amizade virou bagunça.
Rapidinhas
- A nota de 27 de julho (sobre a conferência de Humberto Maturana e Ximena Dávila) foi publicada no site do Instituto Matríztico no dia seguinte. Eu nem ia mencionar isso aqui, mas já cansei de trabalhar pela minha própria obscuridade. E se vocês acharem que isto é marketing pessoal, o problema é todo de vocês: pensem o que quiserem. Eu fiquei contente (e compreensivelmente orgulhoso) com essa publicação, punto. - Um JVC UX-J50 (120 watts RMS) acaba de entrar na minha vida. Isso pode não parecer digno de nota, e talvez realmente não seja, mas para quem estava com a mesma (e sofrível) aparelhagem de som há quinze anos, é uma notícia e tanto. Detalhe: eu já não ouço rádio há quatorze anos. Foi a primeira coisa que pifou. - Lamento, mas este blogue vai morrer. Para ser mais preciso, ele vai ser congelado e outro blogue (com um novo endereço) vai tomar o seu lugar. Ainda tenho algumas notas a publicar nele, mas dentro de dois ou três meses a mudança vai acontecer. Aliás, estou considerando a hipótese de transformar o próprio site (caosmos.com) numa biblioteca virtual e construir um novo site que tomará o seu lugar. Trata-se, digamos, de uma reformulação conceitual. Aguardem. - O Blogger.com abriu para os seus usuários a possibilidade de hospedar imagens. E ontem descobri, bastante surpreso, que eles também substituíram o velho banner com anúncios por uma discreta e elegante barra de navegação. Enquanto outros serviços só mudam para pior, o Blogger.com vai na contramão e fica cada vez melhor. É por isso que eu digo - agora publicamente - e repito quantas vezes for necessário: eu amo o Blogger e amo o Google. Longa vida para eles. 17.8.04
caôs malignos
Nem todos os caôs afirmam a vida e nem todo caozeiro é Picasso. Quem ainda não leu (n'O Globo de sexta-feira passada) a reportagem "Os e-mails não justificam os fins", de Carla Rocha, poderá comprová-lo facilmente com um simples clique no rato. 7.8.04
egoclastia
eu : nada mais que um resto dos restos que experimento. dom Quem se poupa não morde a polpa. 3.8.04
Dogville com debate no IFCS/UFRJ
Amanhã (quarta-feira) vai haver uma exibição do filme Dogville, de Lars Von Trier, no IFCS/UFRJ, no Largo de São Francisco. Depois do filme haverá um debate. Fui chamado para participar da mesa e estarei lá. A exibição começa às 13:30. Ei, não é qualquer filme, é Dogville. Vou ver pela quarta vez com todo o prazer. Se vocês não viram, não percam - nem que seja apenas para ver a Lauren Bacall, o Ben Gazarra ou... a Nicole Kidman. ;-) E por falar em filmes, espero que um dia alguém faça um filme sobre a tragédia ocorrida em Assunção, no Paraguai. Eu faria, contando um pouco da vida de algumas vítimas, seus sonhos, suas lutas, e por fim sua morte. O fato lembrou-me uma tira do Henfil que eu jamais esqueci: bater em velhinha pode, mas ameaçar a propriedade é crime gravíssimo. Mais de trezentos mortos num supermercado em chamas, e por quê? Porque morrer queimados e pisoteados vocês podem, mas levar sem pagar, jamais. Loucura? Quem dera que fosse loucura. É muito pior, é a racionalidade capitalista. A raça superior do capitalista é a Mercadoria. Nós somos apenas seus servos e reprodutores.
Em torno do risco: carta a uma amiga II
Quanto ao tema do risco, é algo bastante confuso... tão confuso que eu cheguei a pensar que não terminaria a tese. Por isso o primeiro capítulo é dedicado à distinção entre risco e perigo. Quase sempre, o risco do qual se fala por aí nada mais é do que o perigo, a ameaça, algo que vem de fora, algo que suscita previsão e controle. Esse é o objeto do risk management, da gestão do risco. Mas o risco que estou querendo pensar tem a ver com desejo. Há teóricos que o chamam de "risco desejado", e não vejo nenhum problema nisso, mas eu prefiro chamá-lo simplesmente de risco. Quanto à porra-louquice, isso é muito complicado. Por exemplo, eu me sentiria muito mal fazendo sexo casual sem camisinha. Me sentiria um idiota. (Para falar a verdade eu me sentiria um idiota só por fazer sexo casual, mas isso é outra história, risos.) E se nessa eu pegasse AIDS, caramba, eu me sentiria um completo estúpido. Mas eu já transei (várias vezes) sem camisinha com uma mulher (meio doida) pela qual eu estava completamente apaixonado. Só que nesse caso eu estaria pronto para aceitar todas as conseqüências do meu ato. Se acontecesse o pior, eu não teria ficado doente por causa de uma simples transa, teria ficado doente por amor... Enfim, mesmo que isso soe igualmente estúpido, ou estupidamente romântico, trata-se do meu desejo, e mesmo que eu ficasse mortalmente doente, mesmo que minha vida sexual praticamente terminasse por causa disso, eu não me sentiria um estúpido. É a minha vida, é o meu desejo, e ponto final. Por que estou dizendo isso? Porque negar completamente a porra-louquice me parece muito suspeito, na verdade tão suspeito quanto afirmar uma porra-louquice sem nenhum critério. Mas então qual é o critério? O critério, obviamente, é o desejo. Mas qual é o critério do desejo? Ora, isso não é muito difícil, o critério do desejo é o eterno retorno. O eterno retorno é a única regra prática concebível para o desejo, pois é uma forma vazia, e portanto não nos diz "o que" devemos desejar - e nem submete nosso desejo (necessariamente singular) a uma universalização, como a regra kantiana. O eterno retorno é a regra ética do desejo, para além de toda moral. Tu queres? Então queiras a tal ponto que possas querer também o eterno retorno daquilo que tu queres. Quando um homem chega a esse ponto, já não há mais porra-louquice, e isso mesmo que ele enfrente os riscos mais extremos. O que existe é o desejo elevado à enésima potência. Obviamente, essa é apenas a primeira regra do eterno retorno, há uma outra, bem mais complexa, porém eu creio que essa primeira regra já basta para dar início a uma revolução completa em nossa vida. Então o eterno retorno é a essência do risco? Não... O eterno retorno é a regra prática do desejo. Ao contrário, talvez o risco é que seja, em certo sentido (e isso teria a ver com a segunda regra), o segredo do eterno retorno. Isso está num artigo que escrevi anos atrás, e que está em caosmos. Quanto à essência do risco, bem, isso depende de uma longa argumentação, não dá pra falar disso por email sob pena de enfraquecer um pensamento que, à primeira vista, repito, pode parecer decepcionante... embora eu creia que não seja, é claro. ;-) 2.8.04
Em torno do risco: carta a uma amiga
Há algum tempo eu estava pensando em colocar aqui um resumo do meu trabalho de tese, mas ao mesmo tempo temia que tudo soasse demasiadamente abstrato. Hoje, porém, ao escrever uma carta para uma amiga, acabei percebendo que ela fazia, de uma maneira bastante informal, uma espécie de resumo, senão da minha tese, ao menos de suas linhas mais gerais. Como não há nessa carta absolutamente nada de "pessoal" (e por isso mesmo espero que minha amiga não se chateie com sua publicação), aqui está ela. :-) Acabo de ler sua monografia e gostei muito. Você trabalhou intensamente com o texto da Paula Sibilia, que tive o prazer de entrevistar na época do lançamento do livro dela, na época em que eu tinha o meu próprio programa de entrevistas aqui na Unitevê/Uff. E, é claro, o que mais me chamou a atenção - não podia ser de outra maneira - foram as passagens em que você questiona a conceituação, ou melhor, o uso prático do conceito de "risco" na modernidade. Pareceu-me (me corrija se eu estiver errado) que você levanta, mesmo que en passant, a seguinte questão: o que se torna a vida quando ela se torna uma vida "segurada"? O que se torna a vida quando ela se deixa dominar por essa obsessão contra o risco? Ora, nós dois sabemos muito bem a resposta. Trata-se, mais uma vez, do triunfo da vida reativa, do triunfo das forças reativas e da vontade de nada sobre a atividade e a afirmação. Enfim, essa é uma das questões que eu estou trabalhando na minha tese: a possibilidade de inventar um conceito de risco no qual o risco seja pensado como uma potência afirmativa. Só que não bastaria chegar e dizer "vamos nos arriscar que é bacana, pessoal". Não basta fazer um mero "elogio da porra-louquice"... isso não seria levado a sério, e talvez nem devesse. Enfim, a questão (como eu a vejo) não é "abolir a prudência" (ou seja, abolir as forças reativas) e sim integrar as forças de conservação numa nova hierarquia das forças, submetê-las à afirmação e à atividade, colocá-las no seu devido lugar (o chicote). É por isso que eu acabei orientando o meu trabalho para um problema extremamente ambicioso, extremamente complexo: afinal, qual é a essência do risco? Qual é o seu grau extremo, sua máxima potência, qual é afinal o risco que não podemos deixar de correr sob pena de continuar nossa sempre renovada tarefa de negar a vida? Tudo bem, eu já corri muitos riscos em minha vida, eu sei na minha própria pele o que é viver uma vida arriscada. Então eu não posso deixar de admirar quem se arrisca, e isso mesmo que tal risco possa parecer (ou ser) um tanto estúpido: negar as forças reativas é preciso, é preciso romper a dominação delas, e se um pouco de "ação" nos ajuda nessa tarefa, isso é ótimo. Mas... será que isso é o bastante? Será que isso será capaz de evitar que, depois de um certo tempo, nós não iremos ceder novamente diante das forças reativas, contratar seguros, planos de saúde, fazer o elogio da segurança e da conservação? E mais: será que "condenar" as forças reativas, entendê-las sob um ponto de vista moral, não seria ainda permanecer preso ao sistema do juízo? Precisamos mesmo deste esgar de desprezo face às forças reativas? Não seria isso uma projeção, uma condenação, no outro, daquilo que não conseguimos superar em nós mesmos? Isso adianta de alguma coisa? Isso é sedutor? É isso que é "ser nietzscheano"? Desprezo esses desprezadores. Para mim eles são uma farsa e não entenderam absolutamente nada, não saíram jamais do plano da moral. São os macacos e os bufões de Zaratustra. Estão cheios de ódio e cheios de vontade de produzir tristeza nos outros. Demasiado humano. Afinal, "onde está" a essência do risco? Onde está o segredo de uma vida que não se deixe dominar pelas forças reativas, sem que isso signifique necessariamente uma paixão de abolição que arraste todas as forças para um destino, eu nem diria trágico, mas melancólico? Espero ensaiar uma resposta a essa questão na minha tese, e também espero que ela não pareça decepcionante; a meu ver, não é. Ao contrário, creio que ela pode ser muito sedutora em termos de uma nova pedagogia, ou seja, que ela pode ser a base de uma nova maneira de educar os adolescentes "aproveitando" toda a sedução que o risco (já) exerce sobre eles. "Vocês querem arriscar-se de verdade, minhas crianças? Então esqueçam a cocaína, eu tenho aqui para vocês uma droga muito mais poderosa." Já se viu algum dia um professor falar assim? 27.7.04
Humberto Maturana e Ximena Dávila
Não vou reproduzir aqui a ordem dos argumentos apresentados na bela conferência desses dois pensadores chilenos, realizada ontem no Teatro da UFF. Quero apenas pontuar algumas questões que me interessam muito de perto e que estiveram, de algum modo, presentes na fala dos conferencistas. Recusar todos os valores não é necessariamente niilismo ou indiferença. Ao contrário, se o decisivo é a experiência, a prática, se o decisivo é valorar (aqui, agora, e a cada momento), ou seja, valorizar o acontecimento tal como ele se apresenta, então fixar valores - quaisquer que sejam - revela-se uma prática mortífera. Na medida em que carregamos a bandeira de nossos valores, e julgamos os demais a partir de sua adequação ou inadequação aos nossos valores, escapa-nos a oportunidade de valorizar a experiência concreta, a oportunidade de valorizar o outro para além de todo valor. Escapa-nos, assim, o afeto e o entendimento do outro, justamente aquilo que poderia fazer a diferença. Vivemos numa cultura de morte. Enquanto pregamos nossos ideais, nossos valores, nossas idéias a respeito daquilo que é certo ou errado, praticamos uma vida mesquinha, limitada, estupidamente arrogante e agressiva, fundada na desvalorização do outro... e de nós mesmos. Ximena Dávila disse a certa altura algo muito bergsoniano: se nós somos seres essencialmente criativos, como se explica que façamos, por exemplo, "cursos de criatividade"? O que se passou para que chegássemos a esse ponto? Entre tantas respostas possíveis a essa questão, agrada-me a de Antonin Artaud em "O Teatro e a Cultura" (introdução a O Teatro e seu Duplo). Nós transformamos a cultura (e o saber em geral) em um valor (e, portanto, também em uma mercadoria), ao invés de tomá-la como uma experiência viva e como um trampolim que nos permita saltar no desconhecido. Tornamo-nos doutores e passamos a ter medo de falar bobagens, preocupando-nos muito mais com a nossa "reputação" perante os demais doutores (que se limitam a comentar as bobagens alheias) do que com a criação. E infundimos em nossos alunos esse medo de falar bobagens, castrando-os desde cedo, ao invés de mostrar-lhes que o essencial é progredir - de bobagem em bobagem - até o ponto em que nossas bobagens passem a fazer, quem sabe, algum sentido, e se tornem elas mesmas forças transformadoras, ou seja, precisamente, cultura. Mas o decisivo, aqui (e em toda parte), como Maturana e Dávila souberam mostrar muito bem, é o desejo. Diga-me o que desejas e eu te direi que mundo queres produzir. Não existe um mundo pré-existente ao qual tenhamos que nos adaptar. Nós produzimos (localmente, é bem verdade) o mundo em que vivemos. Nós produzimos um mundo próprio que se insere (modificando-o) em um "meio ambiente" mais amplo. Por isso mesmo, o que faz a diferença é aquilo que fazemos em nossa prática concreta de todos os dias, e não os valores que "assumimos" e em nome dos quais estamos dispostos a nos matar uns aos outros. Daí a importância da linguagem (ou, segundo o neologismo dos conferencistas, o "linguagear") como pragmática, como potência de relação, de produção de mundos. Não o "amor" como valor supremo e mandamento (Lawrence já dizia que é absurdo fazer do amor uma obrigação), mas o amar como prática concreta. É bastante provável que muitos doutores achem tudo isso muito piegas, mas somente porque eles sequer perceberam onde está o problema. Site de Humberto Maturana e Ximena Dávila: http://www.matriztica.org 21.7.04
Filosofia
Dama impassível, impenetrável, minha puta de olhos abstratos. Poesia Puta de farta carne, lasciva e fugidia, que jamais penetro senão por estupro. Angústia Velha rameira desdentada, que me morde quando broxo.
Em defesa do "portugues"
O fato Ontem, por intermédio de uma dessas listas nas quais terminamos inscritos meio que por acaso, recebi um email de uma poetisa (e professora de português) conclamando os leitores à defesa da língua portuguesa. No texto, mal redigido, a palavra "português" estava escrita (três vezes) sem acento, e o advérbio "diante" estava... no plural. O dilema Um trecho da missiva diz: "Repasse esta mensagem a quantos você puder...", ao passo que outro diz: "Proponho que apaguemos qualquer mensagem que conspurque a nossa língua." E agora? A solução Nem repassar, nem apagar. Guardar a mensagem na pasta "Casos de Polícia". 19.7.04
Não há estrela que saiba seu próprio nome,
não há nome que não queime em ardores estelares não há o que nos obrigue ao registro do que escapa e nos escapa: os nomes, fogos-fátuos, breves eczemas, erupções, manchas solares. Muito mais, muito além da humana obrigação, constrangimento férreo que nos reúne a todos, a faina das estrelas, das formigas, dos lêmures, que nos força ao registro das explosões e também a abrir inúteis gavetas às quais não voltaremos. Nada falta a nada, e no entanto nada sobra (senão a faina que não labuta pela própria faina), excesso absoluto, sem trégua, sem potes de ouro no derrière dos arco-íris, insistimos, obviamente pois senão teríamos já, tristemente, desistido para espanto das formigas, que jamais desistem. 15.7.04
L'humilité n'est souvent qu'une feinte soumission, dont on se sert pour soumettre les autres; c'est un artifice de l'orgueil qui s'abaisse pour s'élever; e bien qu'il se transforme em mille manières, il n'est jamais mieux déguisé et plus capable de tromper que lorsqu'il se cache sous la figure de l'humilité.
13.7.04
Qui suis-je?
D'où je viens? Je suis Antonin Artaud et que je le dise comme je sais le dire immédiatement vous verrez mon corps actuel voler en éclats et se ramasser sous dix mille aspects notoires un corps neuf où vous ne pourrez plus jamais m'oublier. 9.7.04
Trecho de uma carta a um amigo que escreveu um poema absolutamente fantástico
Nietzsche disse que não temos olhos (e ouvidos, etc.) senão para aquilo de que temos a experiência. E o que é um poema, ao menos segundo meu entendimento torpe e possivelmente abstrato a respeito do que é um poema, senão o registro de uma experiência? Se bem que a experiência se faz ao mesmo tempo em que se registra, do mesmo modo que se dá ao leitor no tempo mesmo em que se decifra ou se desvela; logo, ai daquele que escreve mal: além de estropiar suas próprias experiências num mal-dito mal-acabado, o mau escritor irá turvar a experiência do leitor, acaso exista, ainda que virtual, e não faz diferença se prévia deveras ou inventada (ou reinventada) pelo próprio poema. Quem escreve não pode descansar no relativo, por mais que este saiba simular um absoluto; o muito perto é ainda longe demais; nada senão o mergulho num absoluto pode contentar o escritor e portanto encantar ou assombrar o leitor. Por isso escrever é fascinante: pois o absoluto pode ser qualquer coisa, o brilho de uma gotícula ou a asa de uma barata, mas eternizar esse momento "como um inseto no âmbar" não pode ser qualquer coisa, ao contrário, tem que ser trans-lúcido a ponto de deixar "a coisa mesma" dizer-se. Mundo das essências que arruína o platonismo e suas generalidades, no qual esta lama e esta sujeirinha sob a unha liberam sua alminha eterna. Corpo glorioso da linguagem, gozo perante o qual todos os demais empalidecem. 2.7.04
O último tango em Paris
No mesmo dia em que consegui comprar (pela bagatela de vinte reais) o DVD de um dos filmes mais extraordinários de todos os tempos, morreu Marlon Brando. Caô Press estará de luto durante os próximos três dias. Mas Brando já tinha 80 anos. Quando se chega a essa idade, a morte não constitui exatamente uma surpresa. Por outro lado, também não foi nenhuma surpresa ver Arnaldo Jabor falando na TV sobre "as personagens" de Marlon Brando. Nossa inteligência não tem suficiente humildade para consultar de vez em quando um bom dicionário e descobrir - por exemplo - que "personagem" é um substantivo de dois gêneros. E nem mesmo a responsabilidade que a comunicação com milhões de pessoas implica é capaz de mudar isso. É claro que todo mundo comete erros, não se trata disso. Mas quando a inteligência de um país é incapaz de trocar sua empáfia por um pouco de humildade (e de pesquisa), reclamar do lastimável estado de nosso sistema de ensino acaba sabendo a hipocrisia. Melhor seria se cada um daqueles que está envolvido de algum modo com "cultura" e "educação" fizesse direito sua parte e principalmente sua lição de casa. E se o leitor está pensando que se trata aí de um mero "detalhe", permita-me dizer mais uma coisa. Tudo na vida é detalhes (ou são detalhes, as duas formas estão corretas). É pelos detalhes, e não pelos gestos largos e palavras altissonantes, que se percebe quando alguém está realmente preocupado em fazer deste mundinho de merda algo um pouquinho melhor ou, ao contrário, está meramente fazendo pose para a platéia. Obviamente, perder de vista o essencial em função dos detalhes, ou seja, perder-se nos próprios detalhes, equivale a perder de vista o próprio sentido do que seja cultura. Mas o desprezo pelos detalhes revela algo quase tão ruim: nossa preguiça, nossa falta de sutileza, o caráter grosseiro de nosso espírito e de nossas idéias. E esse é o terreno propício para que vicejem as palavras de ordem, e portanto os totalitarismos. Outro dia vi uma propaganda na TV que é exemplar a esse respeito. Seu tema é a própria criação em publicidade. Ela diz algo assim: "uma boa idéia não precisa de explicação". Mas na verdade o que ela quer dizer é: "uma palavra de ordem eficiente captura o desejo do consumidor de forma imediata". Para a publicidade, explicar idéias - boas ou ruins, diga-se de passagem - é perda de tempo, já que não há nada a "compreender": tudo se resume em produzir de maneira eficiente um afeto que leve ao consumo do produto anunciado. Não interessa ao sistema capitalista produzir uma humanidade pensante. Um rebanho de dóceis consumidores, movido para lá e para cá por palavras de ordem cada vez mais sutis, já é o bastante. Não, eu não sou contra o consumo ou contra o "consumismo", pois esse é um discurso vazio, uma rematada estupidez e ainda por cima uma patente hipocrisia, já que a vida depende necessariamente da produção, do registro e do consumo. O que me assusta não é o consumo e nem mesmo o consumismo. O que me assusta é que o objetivo deliberado do sistema em que vivemos seja produzir gente com uma potência de pensar reduzida ao mínimo apenas porque isso favorece o consumo. Esse é que é o verdadeiro problema, e trata-se de um problema que aqueles que simplesmente pregam contra o "consumismo" não estão aptos a estabelecer de maneira rigorosa. Prepara-se assim o terreno para um totalitarismo muito mais sutil e pernicioso do que todos os anteriores. Assim, mesmo uma simples consulta a um dicionário é uma questão política. Apenas o rigor absoluto do pensamento poderá evitar a catástrofe que se aproxima. Não tenham ilusões a esse respeito. Nós desejamos viver sem "esquentar a cabeça", sem "complicar as coisas", ou seja, sem pensar, pois isso... dá muito trabalho, não é mesmo? Mas quem pagará o preço por essa nossa atitude senão nossos filhos e netos? Pois enquanto cantamos "deixo a vida me levar" e nos contentamos com palavras de ordem fáceis do tipo "paz e amor", o ovo da serpente descansa numa estufa quentinha. 27.6.04
EL LIBRO SE HACE CASI UN HOMBRE
Para todo escritor es siempre una cosa nueva y sorprendente que su libro, una vez que se ha separado de él, continúe viviendo con vida propria; esto le enoja como si una parte de un insecto se separase y siguiese desde entonces su proprio camino. Quizá le olvidará casi completamente, quizá se elevará por encima de las concepciones que allí ha depositado, quizá no le volverá a oír más y habrá perdido ese impulso con que volaba cuando concebía el libro; sin embargo, el libro se busca lectores, inflama existencias, proporciona felicidad, espanto, produce obras nuevas, llega a ser el espíritu de nuevas acciones; en suma, vive como un ser dotado de espíritu y de alma, y, sin embargo, no es un hombre. Puede decirse que el más afortunado destino del autor es que cuando sea viejo pueda decir que todo lo que en él había de ideal, de sentimiento creador, de vida, fortalecedor, edificante, luminoso, vive aún en sus obras, y que él ya no es más que la ceniza gris, mientras que el fuego se ha conservado y se propagado por todas partes. Ahora bien: si pensamos que toda acción humana, y no solamente un libro, se convierte en cierto modo en ocasión de otras acciones, decisiones, pensamientos y que todo lo que se hace se enlaza indisolublemente con lo que se hará, reconoceremos la verdadera "inmortalidad" que existe: la del movimiento; lo que una vez ha sido puesto en movimiento está en la cadena total de todo el ser, como un insecto encerrado y eternizado en el ámbar. NIETZSCHE - Humano, demasiado humano, Vol. I, tradução de Eduardo Ovejero y Maury, Buenos Aires, M. Aguilar, 1948, p. 167 (208). 25.6.04
Pena que a fome não passe
Misturar acupuntura (um saber milenar de eficácia comprovada) e astrologia (hum...) no mesmo saco me soa a sacanagem. Mas tudo bem. Va bene. Porém o bloco do Globo Repórter (que acaba de terminar) que mais me chamou a atenção foi aquele que relata a prática da sugestão no combate à obesidade. Foi assim: uma senhora (bem) acima do peso relatou que, depois de imaginar-se comendo um monte de pães saborosíssimos, sente-se saciada e sem vontade de comer. Não, eu não sou besta de imaginar que isso não funcione. Mas... e quando o problema é desnutrição? E quando não se tem aquela capa de gordura bacana para queimar? Em certa ocasião esse filósofo [Diógenes, o cínico] masturbava-se em plena praça do mercado e dizia: "Seria bom se, esfregando o estômago, a fome passasse!" Diógenes Laércio - Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, traduzido do grego por Mário da Gama Kury, Brasília, UnB, 1988, p. 163. 20.6.04
Desejo de matar
Hoje, domingo, uma leitora d'O Globo (Niterói) narrou na seção de cartas como sua filha perdeu o celular e outros pertences num assalto a um ônibus, e depois escreveu o seguinte: "Não seria a hora de o Brasil começar a pensar na possibilidade de tornar a pena de morte legal? Sou contra a violência, mas..." Na sexta-feira passada a polícia matou (ao menos) um rapaz no Morro do Palácio. Ele foi morto com (ao menos) um tiro na cabeça. Pelo que pude apurar, ele era muito jovem e de boa índole, mas estava de fato envolvido com o tráfico. A julgar pela falência de nosso sistema educacional, judicial e prisional, isso é tudo o que temos a oferecer uns aos outros: morte. E já que é assim, a partir de hoje eu sou a favor da pena de morte para todos os envolvidos em desvios de verbas públicas. Para todos os envolvidos, ou seja, não apenas para os servidores públicos. Prisão perpétua já seria interessante, é claro, mas... precisamos de mais do que isso, precisamos fazer nossa revolução francesa. Digamos que se trata de um programa emergencial para um país cheio de miséria e que está em plena guerra civil. A pena pode ser aplicada para desvios de valores acima de um salário mínimo, simplesmente para poupar o barnabé que roubou um grampeador da repartição. Acima disso, guilhotina. E estamos conversados. 17.6.04
Esboço para um prefácio ao livro de um amigo
Por que alguém contaria num romance a história de sua vida? Escrever não é mergulhar num virtual, e retirar de si mesmo uma infinidade de vidas embrionárias, atualizando e explicando (no sentido etimológico da palavra) autênticas entidades, seres não-nascidos tão diferentes entre si quanto uma galáxia de outra, criando todo um mundo de diferenças absolutamente real porque originado na mesma fonte de onde saem todos os mundos conhecidos e desconhecidos? Poderia ser vaidade se se tratasse ainda de exaltar um eu que se reconheceria e se faria reconhecer na trama de uma narrativa, do prazer de exibir ao mundo uma trajetória épica pela qual o escritor forjasse uma identidade gloriosa. Mas se o eu em questão já foi humilhado e destroçado impiedosamente, se dele já não resta senão um simulacro, preservado exclusivamente para ludibriar os psiquiatras de plantão, então sentimos que não é disso que se trata. Mas então... por quê? Em primeiro lugar, pode-se invocar a experiência. Quem escreve sobre sua vida escreve sobre acontecimentos, sobre vivências, e não sobre meros fantasmas subjetivos. Só que não há diferença essencial entre a experiência de um puro virtual que se atualiza e a experiência que carregamos em nossa carne e em nossa alma. E é justamente por isso que a literatura pode ser uma experiência tão intensa, para quem lê e sobretudo para aquele que escreve: pois trata-se de (imprevisível) produção de real, e não de produção de fantasmas. Assim, se nem mesmo a experiência é um critério suficiente, aquele que escreve sobre sua vida há de ter um motivo muito bom para fazê-lo. Obviamente, ter tido uma vida, e não uma dessas contrafações com as quais geralmente nos contentamos, parece-me constituir uma condição necessária. Mas a condição necessária está longe de ser uma condição suficiente, e para dificultar tudo, não há como ensaiar uma resposta universalmente válida. Cada qual que está a escrever sobre sua vida que ensaie a sua, se é que isso lhe parece realmente importante. Pois a única questão decisiva é saber se iremos escrever - seja lá sobre o que for - com nossos fantasmas ou com nosso sangue. "É a arte de uma classe dominante, essa prática do vazio como economia de mercado: organizar a falta na abundância da produção, fazer todo desejo cair no grande medo de faltar, fazer o objeto depender de uma produção real que se supõe exterior ao desejo (as exigências da racionalidade), enquanto a produção do desejo passa para o fantasma (nada além do fantasma)." DELEUZE e GUATTARI - L'Anti-Oedipe, Capitalisme et Schizophrénie, Paris, De Minuit, 1972, p. 29. 14.6.04
"A única medida do amor, diz Santo Agostinho, é amar sem medida; melhor ainda, a própria ausência de medida é que é a medida... A desmedida não poderia, então, ser o objeto de uma interdição quando se trata do amor. E é por isso que a fobia de um amor "imoderado" já implica uma restrição injuriosa, uma mesquinhez irrisória, uma espécie de sordidez merceeira. (...) As palavras fadiga, excesso, exagero não têm mais lugar aqui; o amor as abandona à timidez pequeno-burguesa; ele não tem medo de passar da medida nem de transpor um limite; o limite recua à medida de seu impulso. O impetus amoroso nada quer saber do regulador que, na ocasião, compensaria os transbordamentos; sua única lei é o cada-vez-mais, que se exalta e embriaga de si mesmo, como um furor sagrado: sua única lei é o crescendo frenético e o acelerando, e o precipitando que vai até a vertigem e arrisca finalmente fazer tudo explodir."
Vladimir Jankélévitch - O Paradoxo da Moral, tradução de Helena Esser dos Reis, São Paulo, Papirus, 1991 (1981), pp. 75-76. 11.6.04
Hit the road, Jack
Como diz Samuel Butler, como podemos dizer que Händel morreu se ele continua atraindo milhares de pessoas às salas de concertos? Portanto, é totalmente falsa a notícia do jornal (mas quem ainda acredita em jornais, não é mesmo?). Ray Charles não morreu coisíssima nenhuma. Apurem os ouvidos e - ouçam. Porém o que haveria de mais óbvio do que transcrever aqui uma música de Ray Charles em sua homenagem? Não. Vamos fazer uma homenagem diferente. Vamos de Cartola, outro que só morrerá - ou melhor, só será esquecido - quando o gênero humano desaparecer e já não houver ninguém para cantar a história. É uma canção de despedida, de definitiva despedida. Ficam Butler, Cartola, Ray Charles, vão-se os maus. Pois hoje (ontem), durante um pôr-do-sol nas areias de Ipanema, finalmente descobri (de maneira sublime) que já vão tarde, tarde até demais. E o melhor de tudo: já não sinto nenhuma pena. Tese e amor. Nada mais. Ainda é cedo amor Mal começaste a conhecer a vida Já anuncias a hora da partida Sem saber mesmo o rumo que irás tomar Preste atenção querida Embora saiba que estás resolvida Em cada esquina cai um pouco a tua vida Em pouco tempo não serás mais o que és Ouça-me bem amor Preste atenção, o mundo é um moinho Vai triturar teus sonhos tão mesquinhos Vai reduzir as ilusões a pó Preste atenção querida De cada amor tu herdarás só o cinismo Quando notares estás à beira do abismo Abismo que cavastes com teus pés 8.6.04
Cirurgias reparadoras gratuitas - UFRJ
Crianças de até 12 anos, comprovadamente de baixa renda, moradoras de qualquer município do Estado do Rio de Janeiro, portadoras de deformidades inestéticas diversas (lábio leporino, fenda palatina, cicatrizes, seqüelas de queimaduras, seqüelas de violência, síndromes e outras), poderão beneficiar-se com cirurgias corretivas GRATUITAS. O primeiro passo é fazer um cadastro no CNEP (http://www.cnep.org.br) ou entrar em contato com Michelle Lima - (21) 2223-0290. Se você conhece alguma criança nas condições descritas acima, ajude-a, indicando este serviço ao seu responsável. O projeto já beneficiou mais de cento e vinte crianças, por meio de quase duzentas cirurgias. 6.6.04
Último desejo (nota fúnebre)
Quando eu morrer, façam do meu corpo o que quiserem: queimem, enterrem, entreguem aos urubus - não sem antes, claro, aproveitar dele o que puder ser aproveitado. Só faço questão de uma coisa: que haja velório (pouco importa o local) e que nele se toque um CD que estou preparando. Nada de padres, pastores ou rabinos, a não ser que se disponham a ficar quietos. Leituras de textos outros - de poesia a notícias das páginas de esportes - serão bem-vindas. Quanto ao CD, ainda não sei exatamente que músicas entrarão nele, mas algumas já estão praticamente certas: Frank Zappa - Filthy Habits (do disco Sleep Dirt) Pink Floyd - A Saucerful of Secrets (versão em estúdio, do disco homônimo) Nadejda Hvoineva - Izlel e Delio Haidutin (do disco Le Mystère des Voix Bulgares, vol. 3) Ravi Shankar & Philip Glass - Meetings Along the Edge (do disco Passages) King Crimson - Starless (do disco Red) Astor Piazzolla - Concierto para quinteto (do disco Hora Zero) A princípio, a ordem acima está boa. Eu adoraria incluir nessa lista o Introitus do Réquiem de Mozart, mas como seria óbvio demais, esqueçam. Ah, caso eu me mate - isso é extremamente improvável, mas nunca se sabe - incluam mais estas duas: Roberto Goyeneche - Solo (do disco Tangos del Sur) Roberto Goyeneche - Como abrazado a un rencor (idem) Como abrazado a un rencor Tango (1930) Música: Rafael Rossi Letra: Antonio Miguel Podestá (El Gauchito) (recitado) "Está listo", sentenciaron las comadres - y el varón, ya difunto en el presagio, en el último momento de su pobre vida rea, dejó al mundo el testamento de estas amargas palabras piantadas de su rencor... (cantado) Esta noche para siempre terminaron mis hazañas un chamuyo misterioso me acorrala el corazón, alguien chaira en los rincones el rigor de la guadaña y anda un algo cerca 'el catre olfateándome el cajón. Los recuerdos más fuleros me destrozan la zabeca: una infancia sin juguetes, un pasado sin honor, el dolor de unas cadenas que aún me queman las muñecas y una mina que arrodilla mis arrestos de varón. Yo quiero morir conmigo, sin confesión y sin Dios, crucificado en mis penas como abrazado a un rencor. Nada le debo a la vida, y nada le debo al amor: aquélla me dio amargura y el amor, una traición. Yo no quiero la comedia de las lágrimas sinceras, ni palabras de consuelo, no ando en busca de un perdón; no pretendo sacramentos ni palabras funebreras: me le entrego mansamente como me entregué al botón. Sólo a usté, vieja querida, si viviese, le daría el derecho de encenderle cuatro velas a mi adiós, de volcar todo su pecho sobre mi hereje agonía, de llorar sobre mis manos y pedirme el corazón... 4.6.04
Paralelismo
"O espírito agarra-se por preguiça e por constância àquilo que lhe é mais fácil ou mais agradável: esse hábito sempre impõe limites aos nossos conhecimentos, e ninguém jamais se deu ao trabalho de estender e de conduzir seu espírito tão longe quanto ele poderia ir." LA ROCHEFOUCAULD - Réflexions ou Sentences et Maximes Morales, 482, Paris, Bordas, 1949 (1655), p. 79. "Ninguém até agora determinou o que pode um corpo." SPINOZA - Éthique, trad. Charles Appuhn, Paris, Garnier Frères, 1934 (1675), tomo I, p. 251 (Livro III, Prop. 2, Escólio) Trata-se de mostrar que o corpo ultrapassa o conhecimento que dele temos, e que o pensamento igualmente ultrapassa a consciência que dele temos. É portanto por um único e mesmo movimento que nós chegaremos, se isso é possível, a apreender a potência do corpo para além das condições dadas de nosso conhecimento, e a apreender a potência do espírito para além das condições dadas de nossa consciência." DELEUZE - Spinoza: Philosophie pratique, Paris, De Minuit, 1981 (1970), p. 29. P.S. - Acabo de ler no Jornal do Brasil que a partir de 1º de maio livros e periódicos importados passaram a sofrer tributação de 9,25% (PIS/Cofins). Em compensação, há isenção de imposto, por exemplo, para sêmen e embriões de bois. Foi-se o tempo em que um país era feito com "homens e livros". Hoje um país se faz com chacinas, estupidez e muita porra de boi. 1.6.04
Para além dos signos mundanos e dos signos do amor
"As coisas chegaram a um ponto que se pode dizer que, assim como em outras épocas a juventude corria atrás do amor, tinha sonhos de ambição, de êxito material, de glória, hoje ela tem um sonho de vida; e é atrás da vida que ela corre, mas essa vida ela a persegue, se se pode falar assim, em sua essência: ela quer saber porque a vida está doente, e o que apodreceu a idéia da vida." ARTAUD - Messages révolutionnaires, Paris, Gallimard, 1979 (1936), p. 37. "O que é uma essência, tal como revelada numa obra de arte? É uma diferença, a Diferença última e absoluta. É ela que constitui o ser, que nos faz conceber o ser. Por isso a arte, na medida em que manifesta as essências, é a única capaz de nos dar o que nós procuraríamos em vão na vida: 'A diversidade que eu havia buscado em vão na vida, nas viagens...' 'Não existindo na Terra o mundo das diferenças, entre todos os países que nossa percepção uniformiza, com mais forte razão não existe no mundo elegante. Existe ele, aliás, em alguma parte? O séptuor de Vinteuil parecia ter-me dito que sim.' (...) Apenas a arte nos dá aquilo que esperaríamos em vão de um amigo, aquilo que teríamos esperado em vão de um amado." DELEUZE - Proust et les signes, Paris, PUF, 1993 (1964), p. 53-54, 55. 30.5.04
Os signos da arte
"Swann considerava os motivos musicais como verdadeiras idéias, de um outro mundo, de uma outra ordem, idéias veladas de trevas, desconhecidas, impenetráveis à inteligência, mas que nem por isso deixam de ser perfeitamente distintas umas das outras, desiguais de valor e significado. Ao fazer tocar de novo a pequena frase, após a reunião dos Verdurin, procurara saber de que modo ela o aliciava e envolvia, como um perfume, uma carícia, e averiguara que era ao leve afastamento das cinco notas que a compunham e ao retorno constante de duas entre elas que se devia aquela impressão de retraída e trêmula doçura; mas na verdade sabia que assim raciocinava, não sobre a própria frase, mas sobre simples valores que colocara, para comodidade da inteligência, no lugar da misteriosa entidade que havia vislumbrado, antes de conhecer os Verdurin, naquela reunião em que ouvira a sonata pela vez primeira. Sabia que até a lembrança do piano falseava ainda mais o plano em que via as coisas da música, que o campo aberto ao músico não é um mesquinho teclado de sete notas, mas um teclado incomensurável, ainda quase completamente desconhecido, onde apenas aqui e ali, separadas por imensas trevas inexploradas, algumas dos milhões de teclas de ternura, de paixão, de serenidade que o compõe, cada qual tão diferente das outras como um universo de outro universo, foram descobertas por alguns grandes artistas que, despertando em nós o correspondente do tema que encontraram, nos prestam o serviço de mostrar-nos que riqueza, que variedade oculta, sem o sabermos, essa grande noite indevassada e desalentadora de nossa alma, que nós consideramos como vácuo e nada. (...) Talvez o nada é que seja a verdade e todo o nosso sonho não exista, mas sentimos que então essas frases musicais, essas noções que existem em função do sonho, não hão de ser nada, tampouco. Pereceremos, mas temos como reféns essas divinas cativas que seguirão a nossa sorte. E a morte com elas tem alguma coisa de menos amargo, de menos inglório, de menos provável, talvez." Marcel Proust: No caminho de Swann, trad. de Mário Quintana, PoA/Rio, Ed. Globo, s/d, 9ª edição, p. 290-291. 23.5.04
Arte: Julia Codesido "Muchos proyectos de libro visitan mi vigilia; pero sé por anticipado que sólo realizaré los que un imperioso mandato vital me ordene. Mi pensamiento y mi vida constituyen una sola cosa, un único proceso. Y si algún mérito espero y reclamo que me sea reconocido es el de - también conforme un principio de Nietzsche - meter toda mi sangre en mis ideas." José Carlos Mariátegui (Lima, 1928) Do livro que o jovem Che está lendo em Diários de Motocicleta, encontrado aqui. 21.5.04
As novidades de caosmos em 2004
(1) O sítio (caosmos.com) tem ficado "fora do ar" por longos períodos. (2) Os emails enviados para lá não estão chegando. (3) A Globo.com apagou o sítio da LPC (Licença Pública Cultural). 13.5.04
Um estranho ascetismo (por Gilles Deleuze)
"Nietzsche sabia bem, por tê-la vivido ele mesmo, o que constitui o mistério da vida de um filósofo. O filósofo se apodera de virtudes ascéticas - humildade, pobreza, castidade - para fazê-las servir a fins inteiramente particulares, inauditos, muito pouco ascéticos na verdade.(1) Ele faz delas a expressão de sua singularidade. Elas não são para ele fins morais, nem meios religiosos para uma outra vida, mas antes "efeitos" da própria filosofia. Pois não há em absoluto outra vida para o filósofo. Humildade, pobreza, castidade tornam-se desde já os efeitos de uma vida particularmente rica e superabundante, suficientemente potente por ter conquistado o pensamento e subordinado qualquer outro instinto - o que Spinoza chama de Natureza: uma vida que não se vive mais a partir da necessidade, em função de meios e de fins, mas a partir de uma produção, de uma produtividade, de uma potência, em função das causas e dos efeitos. Humildade, pobreza, castidade, são a maneira característica do filósofo de ser um Grande Vivente, e de fazer de seu próprio corpo um templo para uma causa demasiadamente orgulhosa, demasiadamente rica, demasiadamente sensual. (...) Aqui toma todo seu sentido a solidão do filósofo. Pois ele não pode integrar-se em nenhum meio, ele não é bom para nenhum. Sem dúvida é nos meios democráticos e liberais que ele encontra as melhores condições de vida, ou melhor, de sobrevivência. Mas esses meios são para ele somente a garantia de que os maus não poderão envenenar nem mutilar a vida, separá-la da potência de pensar que conduz um pouco mais longe do que os fins de um Estado, de uma sociedade e de todo meio em geral. Em toda sociedade, mostrará Spinoza, trata-se de obedecer e nada mais: eis porque as noções de falta, de mérito e de demérito, de bem e de mal, são exclusivamente sociais, dizendo respeito à obediência e à desobediência. A melhor sociedade será portanto aquela que isenta a potência de pensar do dever de obedecer, e guarda-se em seu próprio interesse de submetê-la à regra do Estado, que só vale para as ações. Enquanto o pensamento é livre, portanto vital, nada é comprometido; quando ele deixa de sê-lo, todas as outras opressões são possíveis, e já realizadas, toda ação torna-se culpável, toda vida ameaçada. É certo que o filósofo encontra no Estado democrático e nos meios liberais as condições mais favoráveis. Mas em nenhum caso ele confunde seus fins com os fins de um Estado, nem com os fins de um meio, uma vez que ele solicita no pensamento forças que se furtam à obediência como à falta, e ergue a imagem de uma vida para além do bem e do mal, rigorosa inocência sem mérito nem culpabilidade. O filósofo pode habitar diversos Estados, assombrar diversos meios, mas à maneira de um eremita, de uma sombra, viajante, locatário de pensões mobiliadas. Por isso não se deve imaginar Spinoza rompendo com um meio judeu supostamente fechado para entrar em meios liberais supostamente abertos, cristianismo liberal, cartesianismo, burguesia favorável aos irmãos de Witt... Pois, seja lá para onde ele for, ele não pede, ele não reclama, com maior ou menor chance de sucesso, senão ser tolerado, ele mesmo e seus fins insólitos, e julga por essa tolerância o grau de democracia, o grau de verdade, que uma sociedade pode suportar, ou então ao contrário o perigo que ameaça todos os homens. (...) É preciso compreender como um todo o método geométrico, a profissão de polir lentes e a vida de Spinoza. Pois Spinoza faz parte dos viventes-videntes. Ele diz precisamente que as demonstrações são os "olhos do espírito". (2) Trata-se do terceiro olho, aquele que permite enxergar a vida para além das falsas aparências, das paixões e dos mortos. Para uma tal visão são necessárias as virtudes, humildade, pobreza, castidade, frugalidade, não mais como virtudes que mutilam a vida, mas como potências que a esposam e a penetram. Spinoza não acreditava na esperança e nem mesmo na coragem; ele só acreditava na alegria, e na visão. Ele deixava os outros viver, desde que os outros o deixassem viver. Ele queria somente inspirar, despertar, fazer ver. A demonstração como terceiro olho não tem por objeto comandar e nem mesmo convencer, mas somente produzir a luneta ou polir o vidro para essa visão livre inspirada. 'No meu entender, vejam, os artistas, os sábios, os filósofos parecem muito ocupados em polir lentes. Tudo isso não passa de grandes preparativos em vista de um acontecimento que não se produz jamais. Um dia a lente será perfeita; e nesse dia nós todos perceberemos claramente a assombrosa, a extraordinária beleza deste mundo...' (Henry Miller)." (1) Nietzsche, A genealogia da moral, III. (2) Tratado teológico-político, cap. 13; Ética, V, 23, escólio. DELEUZE, Gilles - Spinoza: Philosophie pratique, Paris, De Minuit, 1981 (1970), pp. 9-11/23-24. Tradução minha. 12.5.04
Walter Salles
Eu tive uma infância fechada, meio claustrofóbica até uma certa idade. A classe social de onde venho é asfixiante. O filme de estrada traz o inverso disso, permite entender o que é diferente de você. Revista TRIP - Você acha que o filme lucrará com o fato de o rosto do Che ter virado ícone pop? Para muitos ele é só uma camiseta, um Mickey... Walter Salles - Minha posição em relação a isso é clara: a comercialização da imagem de Guevara é uma estratégia para banalizar, desarticular aquilo que ele representa. A totemização do personagem histórico também tem como efeito distanciá-lo das pessoas. O que o filme tenta fazer é exatamente o contrário disso: aproximá-lo do público, mostrar que ele não era apenas um personagem feito de certezas. Uma amiga cubana me disse uma vez que o filho de 10 anos tinha ido até o museu de Guevara em Santa Clara e havia descoberto que um monte de notas que Ernesto tinha tido na escola eram ruins. O menino ficou todo feliz e disse "então um dia eu posso virar o Che". Essa pessoa de carne e osso é que nos interessou - daí a recusa em adotar, tanto no filme quanto na divulgação, aquela imagem tão conhecida de Guevara, na foto do [Alberto] Korda. Vamos ficar felizes se o filme fizer com que as pessoas leiam os diários de Guevara, se o filme gerar alguma forma de debate sério sobre identidade latino-americana. Leia o resto na TRIP. 10.5.04
8.5.04
Acessos aleatórios
Nem só de pesquisas vive a Internet. Ou melhor - reformulando - na Rede nem sempre a resposta às nossas perguntas é mediada pelo Google. Há perguntas que só dependem da digitação de um simples endereço no navegador. São perguntas um tanto estúpidas, é verdade, porém nascidas da curiosidade, mãe de toda ciência - e madrasta de todas as bobagens que fazemos em seu nome. Um exemplo: o que se encontrará num site cujo nome é "www.god.com"? Eu encontrei um sítio cheio de atalhos para outros sítios. Um desses atalhos remete para o "God 101 - Plain Talk about God", e sua chamada é assim: Learn step-by-step how to find God and how to use God for a successful life. Traduzindo: "Aprenda passo a passo como encontrar Deus e como usar Deus para uma vida de sucesso." Confio na sensibilidade e na inteligência de meus (três) leitores e não vou fazer nenhum comentário. (Puxa, perdi uma ótima oportunidade para dizer "tecer um comentário". Tudo bem. A próxima eu não deixo passar.) Um amigo citou-me outro dia uma frase popular no nordeste: "Aí, eu tenho é pena da humanidade..." Gosto muito desse amigo, e adoro o nordeste (mesmo sem jamais ter ido lá), mas confesso que não gosto nem um pouco dessa frase. Tenho cá minhas razões para isso. Apenas o super-homem poderia sentir pena da humanidade, mas ele, justamente, não sentiria pena. Ou talvez sentisse o que Cláudio Ulpiano chamava às vezes de "piedade superior". Mas nós, homens, não temos direito a essa frase. Ainda temos um longo caminho a trilhar para conquistar uma alma aristocrata e para, a partir de uma multidão dessas almas, fundar uma democracia autêntica, legítima, uma democracia de cidadãos - e não uma "democracia" de miseráveis com um título de eleitor numa mão e um pé de sapato na outra. O fato é que não temos sequer idéia do quanto somos confusos. Somos os herdeiros da Terra, mas qual é a nossa herança? A consciência da morte e um amontoado de idéias confusas. Falsos problemas - e soluções à altura dos problemas que sabemos colocar. Confusão generalizada. E o mais interessante nisso tudo é que somos capazes de levar as nossas vidas como se tudo o que nos cerca não passasse de um cenário mal projetado que podemos esquecer tão logo passamos a chave na porta. Como se arrumar um emprego, casar e educar os filhos desse sentido a tudo. É claro que estamos tão entupidos de comida rápida e de imagens rápidas que não temos lá muito tempo para pensar nisso tudo. Falta "idealismo"? Falta vontade de "mudar o mundo"? Não creio. Muita gente quer mudar o mundo. Mas baseados em que idéias? Em vagos sonhos de igualdade, ou pior, em sonhos de supremacia? Talvez em ambos ao mesmo tempo? Pergunte a alguém que quer "mudar o mundo" quais são as mudanças que esse alguém deseja e você logo terá vontade de ver o mundo ficar exatamente como está. Outro dia, num bar centenário do centro do Rio, ouvi alguém na mesa ao lado dizer: "Só o dinheiro e a violência são capazes de mudar o mundo." Quase me meti na discussão, mas contive-me a tempo. Aquele homem já estava morto, e é no mínimo deselegante discutir com um cadáver. Aqueles que acreditam no dinheiro e na violência (mas não na força das idéias) são exatamente os mesmos que acreditam que tudo aquilo que há de importante no mundo sai no jornal ou na TV. A miséria não precisa da nossa piedade. Ela precisa é que tomemos vergonha na cara, e não estou falando aqui a respeito do mui nobre trabalho voluntário (mui nobre e mui sabiamente trabalhado pelas forças do marketing pessoal e empresarial, diga-se de passagem.) Tomar vergonha na cara seria, literalmente, admitir que todos nós, cultos ou incultos, crentes ou ateus, ricos ou pobres, estamos afundados até o pescoço na merda. Admitir que nossas idéias são umas idéias de merda, e que conseqüentemente elas não têm força para nos modificar ou para inventar novos mundos. A coisa é muito pior do que imaginava Cazuza. Não se trata apenas de dizer que "nossas idéias não correspondem aos fatos" (a velha imagem da verdade como adequação). Pior, muito pior: nossas idéias não inventam fatos. Elas não têm força para isso. Nós não somos constrangidos por elas como por uma força que nos ultrapasssa. Artaud escreveu belas e definitivas páginas sobre isso: veja-se, por exemplo, o prefácio ao Teatro da Crueldade. (Correção: o nome do livro é na verdade O teatro e seu duplo). É por isso que os poderes têm interesse em perpetuar a confusão. É por isso que todos aqueles que se comprazem com a confusão são cúmplices de toda a merda que há no mundo. "Mas quem é esse cara? Será que ele pensa que é melhor do que nós?" Melhor? Não. Pior? Também não. Nem melhor nem pior do que ninguém? Também não. Mas esse paradoxo, aparente ou não, fica pra outro dia. Metade da população norte-americana ainda deseja votar em Bush. Metade dos eleitores paulistanos ainda deseja votar em Maluf. Metade dos eleitores fluminenses provavelmente desejará votar novamente em Rosinha & Garotinho. Vamos fazer o seguinte então: vamos todos à merda. Talvez o mau cheiro consiga despertar nossos espíritos embaçados. "Mas esse babaca não disse que ia escrever sua tese? O que ele ainda está fazendo aqui?" O babaca está, sim, escrevendo sua tese. Mas o babaca é um babaca-eremita, é um babaca sem namorada, é um babaca de rala vida social. O babaca é tão babaca que não come ninguém - embora pudesse comer muita gente, e com muita competência. Falta desejo? De jeito nenhum. Na verdade, sobra desejo. Sublimação? Bobagem. Sublimação supõe um naturalismo do desejo. O desejo não precisa ser "sublimado" para tornar-se uma força "culturalmente aceitável". O desejo quer carne mas ele também deseja e investe - imediatamente - o campo social. Ele também deseja arte, filosofia, ciência, e deseja-os diretamente, sem mediações. Então o babaca, em seu tempo livre, escreve estes textos babacas. Mais babaca é quem lê. E se você, leitor desconhecido, não é capaz de sonhar os seus próprios sonhos, então você está condenado a sonhar os sonhos de Maluf ou de qualquer outro. Nesse caso, foda-se. Mas se você sonha, então tome cuidado com seus sonhos. Aprenda a sonhar sonhos menos medíocres. Não se iluda: sua alma morrerá ainda mais rápido do que o seu corpo. E quando você estiver de volta às entranhas da terra, não sobrará nada de você, à exceção de seus sonhos. |