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::::c::::a::::o::::s::::m::::o::::s:::: Caô Press

30.8.04

Entender a vida

A grossa maioria das pessoas intelectualizadas que conheci até hoje pensa que o trabalho do entendimento se resume à compreensão daquilo que está nos livros. Cada qual encontra no "seu" livro ou no "seu" pensador predileto a "sua" doutrina, a sua "verdade", que passa a ser o alfa e o ômega da própria realidade. (Calma, direi mais à frente o que entendo pela palavra "realidade".) Para estes, interpretar a realidade é forçá-la a adequar-se aos seus conceitos, ou seja, julgar. Independentemente de sua erudição ou de sua capacidade intelectual, são todos crentes - ou, em linguagem filosófica, dogmáticos.

Uma pequena minoria dos chamados intelectuais é bem mais inteligente e flexível, mas às custas de sacrificar a própria possibilidade do entendimento. Eles são ligeiros, e mesmo divertidos, mas apenas porque para eles não há absolutamente nada a entender, e o pensamento não passa de um divertido jogo de palavras. Esses são os céticos. Mas para eles, muitas vezes, o próprio ceticismo é um dogma e ainda uma prisão.

Ainda que só possamos compreender a realidade por meio de conceitos, entender a realidade não é entender conceitos. Os conceitos são os óculos ou as lunetas de que nos servimos para enxergar a realidade, mas entender a realidade - entender o devir, as singularidades - é ser capaz de inventar uma nova compreensão para cada nova realidade com que nos deparamos. Pode-se dizer do pensamento exatamente a mesma coisa que Bergson disse sobre o tempo: ou ele é invenção ou não é nada. Mas nós preferimos repetir nossos mestres a entrar nessa aventura que se confunde com a mais alta aventura da vida.

Mandar os próprios mestres à merda (por melhores que sejam e sobretudo se são ou foram os melhores) é a única maneira de honrá-los. Contentar-se em repetir o que eles disseram (ao invés de fazer o que eles fizeram) equivale a congelar em fórmulas aquilo que deveria ser fogo em estado puro.

Percebem? O que está em questão aqui não é a teoria do conhecimento, mas a ética.




19.8.04


Num relógio é quatro e vinte,
no outro é quatro e meia:
é que de um relógio pra outro
as hora vareia


A EMI lançou pela série "BIS" (e está vendendo a preço de camelô) um CD duplo com uma coletânea do extraordinário Adoniran Barbosa. Na verdade esse CD é quase idêntico aos dois CDs lançados em 1999 na série "Meus Momentos". Infelizmente, porém, ele é "quase idêntico" por estranhas razões.

Claro, existem as diferenças de repertório. No CD "Meus momentos" havia 31 músicas, nesse há apenas 28. Quatro músicas que estão no CD "Meus momentos" (Vila Esperança, Não quero entrar, Pafunça e No morro do Piolho) estão ausentes no CD "BIS"; em compensação, este traz Nóis viemos aqui pra quê?, ausente naquele.

Mas o mais estranho é que quase todas as músicas no CD "BIS" tem um ou dois segundos a menos. Para tirar as dúvidas, fiz cópias digitais dos quatro CDs com o EAC e comparei todas as faixas comuns aos dois lançamentos. Para resumir a conversa, algumas faixas do CD "BIS" foram editadas e perderam um segundinho final por meio de um "fade out". O caso mais estranho é o de Triste Margarida (samba do metrô) - aliás, uma das raras faixas cujo tamanho coincide em ambos os CDs: exatos 26.972.780 bytes. E, no entanto, na edição "BIS" não se ouve Adoniran pronunciar a última palavra ("margarida").

Para quem duvida do que estou dizendo e quer um exemplo rápido (e contundente) desse gênero de "manipulação sonora", recomendo a audição da faixa Nóis viemos aqui pra quê?, que está no CD "BIS", e sua comparação com aquela saiu no CD "Adoniran Barbosa", produzido em 2002 pela Som Livre. Trata-se da mesmíssima gravação, e é muito fácil verificar que o final da faixa publicada pela Som Livre foi mutilado. Matematicamente falando, faltam ali 366.912 bytes.

Eu não ignoro que as gravadoras podem invocar razões artísticas para fazer essas edições. Aliás, eu não sou platônico e portanto não sou partidário das "purezas do original". No entanto, uma vez que essas canções são um "patrimônio imaterial" da cultura brasileira, eu adoraria ver nos CDs uma indicação clara de que as músicas foram manipuladas, ou seja, de que elas não são idênticas às faixas originais. Se as coisas fossem feitas assim, de maneira transparente, eu poderia escolher que versão levar para casa. Mas, ao contrário, o que mais se vê são encartes sem nenhuma informação e encartes com informações errôneas e/ou incompletas. Creio que já está mais do que na hora de ver a cultura brasileira receber o respeito que merece, e não estou pedindo aqui encartes luxuosos, estou pedindo apenas o básico: informação de qualidade sobre o material sonoro publicado. Isso não acarreta nenhum custo adicional e, como dizem os homens de cinza, "agrega um valor" enorme ao produto final.

Enquanto isso não acontecer, as gravadoras continuarão merecendo ouvir de nós estes versinhos do grande Adoniran:

Pafunça, que pena, Pafunça,
que a nossa amizade virou bagunça.






Rapidinhas

- A nota de 27 de julho (sobre a conferência de Humberto Maturana e Ximena Dávila) foi publicada no site do Instituto Matríztico no dia seguinte. Eu nem ia mencionar isso aqui, mas já cansei de trabalhar pela minha própria obscuridade. E se vocês acharem que isto é marketing pessoal, o problema é todo de vocês: pensem o que quiserem. Eu fiquei contente (e compreensivelmente orgulhoso) com essa publicação, punto.

- Um JVC UX-J50 (120 watts RMS) acaba de entrar na minha vida. Isso pode não parecer digno de nota, e talvez realmente não seja, mas para quem estava com a mesma (e sofrível) aparelhagem de som há quinze anos, é uma notícia e tanto. Detalhe: eu já não ouço rádio há quatorze anos. Foi a primeira coisa que pifou.

- Lamento, mas este blogue vai morrer. Para ser mais preciso, ele vai ser congelado e outro blogue (com um novo endereço) vai tomar o seu lugar. Ainda tenho algumas notas a publicar nele, mas dentro de dois ou três meses a mudança vai acontecer. Aliás, estou considerando a hipótese de transformar o próprio site (caosmos.com) numa biblioteca virtual e construir um novo site que tomará o seu lugar. Trata-se, digamos, de uma reformulação conceitual. Aguardem.

- O Blogger.com abriu para os seus usuários a possibilidade de hospedar imagens. E ontem descobri, bastante surpreso, que eles também substituíram o velho banner com anúncios por uma discreta e elegante barra de navegação. Enquanto outros serviços só mudam para pior, o Blogger.com vai na contramão e fica cada vez melhor. É por isso que eu digo - agora publicamente - e repito quantas vezes for necessário: eu amo o Blogger e amo o Google. Longa vida para eles.




17.8.04

caôs malignos

Nem todos os caôs afirmam a vida e nem todo caozeiro é Picasso. Quem ainda não leu (n'O Globo de sexta-feira passada) a reportagem "Os e-mails não justificam os fins", de Carla Rocha, poderá comprová-lo facilmente com um simples clique no rato.




7.8.04

egoclastia

eu : nada mais que um resto
dos restos que experimento.

dom

Quem se poupa
não morde a polpa.




3.8.04

Dogville com debate no IFCS/UFRJ

Amanhã (quarta-feira) vai haver uma exibição do filme Dogville, de Lars Von Trier, no IFCS/UFRJ, no Largo de São Francisco. Depois do filme haverá um debate. Fui chamado para participar da mesa e estarei lá. A exibição começa às 13:30.

Ei, não é qualquer filme, é Dogville. Vou ver pela quarta vez com todo o prazer. Se vocês não viram, não percam - nem que seja apenas para ver a Lauren Bacall, o Ben Gazarra ou... a Nicole Kidman. ;-)

E por falar em filmes, espero que um dia alguém faça um filme sobre a tragédia ocorrida em Assunção, no Paraguai. Eu faria, contando um pouco da vida de algumas vítimas, seus sonhos, suas lutas, e por fim sua morte. O fato lembrou-me uma tira do Henfil que eu jamais esqueci: bater em velhinha pode, mas ameaçar a propriedade é crime gravíssimo. Mais de trezentos mortos num supermercado em chamas, e por quê? Porque morrer queimados e pisoteados vocês podem, mas levar sem pagar, jamais. Loucura? Quem dera que fosse loucura. É muito pior, é a racionalidade capitalista. A raça superior do capitalista é a Mercadoria. Nós somos apenas seus servos e reprodutores.




Em torno do risco: carta a uma amiga II

Quanto ao tema do risco, é algo bastante confuso... tão confuso que eu cheguei a pensar que não terminaria a tese. Por isso o primeiro capítulo é dedicado à distinção entre risco e perigo. Quase sempre, o risco do qual se fala por aí nada mais é do que o perigo, a ameaça, algo que vem de fora, algo que suscita previsão e controle. Esse é o objeto do risk management, da gestão do risco. Mas o risco que estou querendo pensar tem a ver com desejo. Há teóricos que o chamam de "risco desejado", e não vejo nenhum problema nisso, mas eu prefiro chamá-lo simplesmente de risco.

Quanto à porra-louquice, isso é muito complicado. Por exemplo, eu me sentiria muito mal fazendo sexo casual sem camisinha. Me sentiria um idiota. (Para falar a verdade eu me sentiria um idiota só por fazer sexo casual, mas isso é outra história, risos.) E se nessa eu pegasse AIDS, caramba, eu me sentiria um completo estúpido. Mas eu já transei (várias vezes) sem camisinha com uma mulher (meio doida) pela qual eu estava completamente apaixonado. Só que nesse caso eu estaria pronto para aceitar todas as conseqüências do meu ato. Se acontecesse o pior, eu não teria ficado doente por causa de uma simples transa, teria ficado doente por amor... Enfim, mesmo que isso soe igualmente estúpido, ou estupidamente romântico, trata-se do meu desejo, e mesmo que eu ficasse mortalmente doente, mesmo que minha vida sexual praticamente terminasse por causa disso, eu não me sentiria um estúpido. É a minha vida, é o meu desejo, e ponto final.

Por que estou dizendo isso? Porque negar completamente a porra-louquice me parece muito suspeito, na verdade tão suspeito quanto afirmar uma porra-louquice sem nenhum critério. Mas então qual é o critério? O critério, obviamente, é o desejo. Mas qual é o critério do desejo? Ora, isso não é muito difícil, o critério do desejo é o eterno retorno. O eterno retorno é a única regra prática concebível para o desejo, pois é uma forma vazia, e portanto não nos diz "o que" devemos desejar - e nem submete nosso desejo (necessariamente singular) a uma universalização, como a regra kantiana. O eterno retorno é a regra ética do desejo, para além de toda moral. Tu queres? Então queiras a tal ponto que possas querer também o eterno retorno daquilo que tu queres. Quando um homem chega a esse ponto, já não há mais porra-louquice, e isso mesmo que ele enfrente os riscos mais extremos. O que existe é o desejo elevado à enésima potência. Obviamente, essa é apenas a primeira regra do eterno retorno, há uma outra, bem mais complexa, porém eu creio que essa primeira regra já basta para dar início a uma revolução completa em nossa vida.

Então o eterno retorno é a essência do risco? Não... O eterno retorno é a regra prática do desejo. Ao contrário, talvez o risco é que seja, em certo sentido (e isso teria a ver com a segunda regra), o segredo do eterno retorno. Isso está num artigo que escrevi anos atrás, e que está em caosmos. Quanto à essência do risco, bem, isso depende de uma longa argumentação, não dá pra falar disso por email sob pena de enfraquecer um pensamento que, à primeira vista, repito, pode parecer decepcionante... embora eu creia que não seja, é claro. ;-)




2.8.04

Em torno do risco: carta a uma amiga

Há algum tempo eu estava pensando em colocar aqui um resumo do meu trabalho de tese, mas ao mesmo tempo temia que tudo soasse demasiadamente abstrato. Hoje, porém, ao escrever uma carta para uma amiga, acabei percebendo que ela fazia, de uma maneira bastante informal, uma espécie de resumo, senão da minha tese, ao menos de suas linhas mais gerais. Como não há nessa carta absolutamente nada de "pessoal" (e por isso mesmo espero que minha amiga não se chateie com sua publicação), aqui está ela. :-)


Acabo de ler sua monografia e gostei muito. Você trabalhou intensamente com o texto da Paula Sibilia, que tive o prazer de entrevistar na época do lançamento do livro dela, na época em que eu tinha o meu próprio programa de entrevistas aqui na Unitevê/Uff.

E, é claro, o que mais me chamou a atenção - não podia ser de outra maneira - foram as passagens em que você questiona a conceituação, ou melhor, o uso prático do conceito de "risco" na modernidade. Pareceu-me (me corrija se eu estiver errado) que você levanta, mesmo que en passant, a seguinte questão: o que se torna a vida quando ela se torna uma vida "segurada"? O que se torna a vida quando ela se deixa dominar por essa obsessão contra o risco?

Ora, nós dois sabemos muito bem a resposta. Trata-se, mais uma vez, do triunfo da vida reativa, do triunfo das forças reativas e da vontade de nada sobre a atividade e a afirmação.

Enfim, essa é uma das questões que eu estou trabalhando na minha tese: a possibilidade de inventar um conceito de risco no qual o risco seja pensado como uma potência afirmativa. Só que não bastaria chegar e dizer "vamos nos arriscar que é bacana, pessoal". Não basta fazer um mero "elogio da porra-louquice"... isso não seria levado a sério, e talvez nem devesse. Enfim, a questão (como eu a vejo) não é "abolir a prudência" (ou seja, abolir as forças reativas) e sim integrar as forças de conservação numa nova hierarquia das forças, submetê-las à afirmação e à atividade, colocá-las no seu devido lugar (o chicote). É por isso que eu acabei orientando o meu trabalho para um problema extremamente ambicioso, extremamente complexo: afinal, qual é a essência do risco? Qual é o seu grau extremo, sua máxima potência, qual é afinal o risco que não podemos deixar de correr sob pena de continuar nossa sempre renovada tarefa de negar a vida?

Tudo bem, eu já corri muitos riscos em minha vida, eu sei na minha própria pele o que é viver uma vida arriscada. Então eu não posso deixar de admirar quem se arrisca, e isso mesmo que tal risco possa parecer (ou ser) um tanto estúpido: negar as forças reativas é preciso, é preciso romper a dominação delas, e se um pouco de "ação" nos ajuda nessa tarefa, isso é ótimo. Mas... será que isso é o bastante? Será que isso será capaz de evitar que, depois de um certo tempo, nós não iremos ceder novamente diante das forças reativas, contratar seguros, planos de saúde, fazer o elogio da segurança e da conservação?

E mais: será que "condenar" as forças reativas, entendê-las sob um ponto de vista moral, não seria ainda permanecer preso ao sistema do juízo? Precisamos mesmo deste esgar de desprezo face às forças reativas? Não seria isso uma projeção, uma condenação, no outro, daquilo que não conseguimos superar em nós mesmos? Isso adianta de alguma coisa? Isso é sedutor? É isso que é "ser nietzscheano"? Desprezo esses desprezadores. Para mim eles são uma farsa e não entenderam absolutamente nada, não saíram jamais do plano da moral. São os macacos e os bufões de Zaratustra. Estão cheios de ódio e cheios de vontade de produzir tristeza nos outros. Demasiado humano.

Afinal, "onde está" a essência do risco? Onde está o segredo de uma vida que não se deixe dominar pelas forças reativas, sem que isso signifique necessariamente uma paixão de abolição que arraste todas as forças para um destino, eu nem diria trágico, mas melancólico?

Espero ensaiar uma resposta a essa questão na minha tese, e também espero que ela não pareça decepcionante; a meu ver, não é. Ao contrário, creio que ela pode ser muito sedutora em termos de uma nova pedagogia, ou seja, que ela pode ser a base de uma nova maneira de educar os adolescentes "aproveitando" toda a sedução que o risco (já) exerce sobre eles. "Vocês querem arriscar-se de verdade, minhas crianças? Então esqueçam a cocaína, eu tenho aqui para vocês uma droga muito mais poderosa." Já se viu algum dia um professor falar assim?



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